sexta-feira, julho 25, 2014

JOÃO JOSÉ SOARES


PROGRAMA PIRACICABA HISTÓRIAS E MEMÓRIAS
JOÃO UMBERTO NASSIF
Jornalista e Radialista
joaonassif@gmail.com
Sábado 28 de junho de 2014.
Entrevista: Publicada aos sábados no caderno de domingo da Tribuna Piracicabana
As entrevistas também podem ser acessadas através dos seguintes endereços eletrônicos:
http://blognassif.blogspot.com/
 

ENTREVISTADO:  JOÃO JOSÉ SOARES

SINDICATO DOS TRABALHADORES EM TRANSPORTE URBANO DE PIRACICABA E REGIÃO

 

O senhor é natural de qual cidade?

Sou meridianense, nascia 25 de setembro de 1951 em Meridiano, um município do Estado de  São Paulo fundado em 1960 e pertence à Microrregião de Fernandópolis.Sou filho de Deocleciano José Soares e Felicidade da Costa Soares. Eles trabalhavam na agricultura. Tiveram os filhos: Maria, Manoel e  eu João José.

Até que idade o senhor permaneceu em Merediano?

Até meus 16 a 17 anos. Lá estudei até o quarto ano primário, mais tarde complementei meus estudos, já em São Paulo.

Em Meriadiano o senhor já trabalhava?

Trabalhava na roça com algodão, arroz, todo tipo de cultura que fosse plantada tinha que trabalhar. Comecei a trabalhar aos sete anos.

Quem decidiu mudar para São Paulo?

Foram os meus pais, fomos morar na Vila Guarany, mais tarde conseguimos adquirir um terreno em São Mateus onde construimos uma casa. A mudança nossa foi feita com um caminhão, um Chevrolet Brasil. Nós tinhamos um primo que trabalhava como empreiteiro nas Indústrias JB Duarte S/A, que produzia óleos vegetais para fins industriais e alimentícios. Esse meu primo contratava o pessoal que descarregava os caminhões que chegavam carregados de amendoim, soja, girassol, grãos, para fabricar óleo entre eles os de marca “VIDA”, “ÓLEO MARIA”, “GILDA”, “CERES”, e “JB”. Fui trabalhar com o meu primo isso foi em 24 de julho de 1968. Em 1970 ou 1971 acabei sendo admitido pela JB Duarte.

O senhor continuou fazendo o mesmo trabalho?

Aí peguei um serviço mais leve, encaixotar as latas de óleo nas caixas. Na época éramos cerca de 300 funcionários. Nesse tempo levávamos as marmitas de casa. Eu era o último que almoçava.

Por quê?

Isso foi no período em que eu trabalhava limpando os tanques dos caminhões. Internamente a cada metro e pouco havia compartimentos, para que o óleo não entornasse o caminhão, com um rodinho eu entrava nos tanques, tirava a borra de óleo que sobrava, era uma pasta que sobrava da moagem do amendoim da soja, utilizada para fazer sabão, havia outros subprodutos como o óleo, a prensagem dos grãos era feita na unidade de Santo Anastácio, o macacão que eu usava ficava todo sujo, eu almoçava por último por causa do cheiro que exalava em função do trabalho que exercia. Dependendo do dia eu limpava três a quatro caminhões no dia. Um caminhão de 30.000 quilos deve ter 6 repartições. Existe um buraco de uma repartição para outra, como eu era magrinho passava por elas. Era um serviço gostoso, melhor do que trabalhar na roça.

Quanto tempo foi  a sua permanência na JB Duarte?

Foi por volta de um ano e meio, em 1972 fui trabalhar como cobrador de ônibus, a Vila Ema Transportes Coletivos Ltda.

Qual foi a sensação que o senhor teve no primeiro dia de trabalho como cobrador de ônibus?

Foi a pior possível. Aquele mundo de gente em pé, nem sempre tinha o troco certinho para voltar, isso no tempo em que o cobrador dava dois puxões na cordinha de sinal para fechar a porta traseira. Naquela época não existia a carteirinha de idoso, todo mundo pagava a sua passagem. No ponto final fazia a leitura dos números da catraca, entregava a féria ( dinheiro das passagens recebidas) na última viagem. Em cada ponto final fazia uma leitura, se fossem quatro viagens seriam quatro leituras.

Quanto tempo durava uma viagem de ônibus na linha que o senhor fazia em São Paulo?

Cheguei a ficar três horas em uma única viagem. Da Vila Ema ao Parque D.Pedro.

Pessoas muito obesas às vezes não passavam pela catraca?

Isso sempre existiu, assim como gestantes, cadeirantes, são pessoas que pagam a passagem, mas não passam pela catraca, que é girada pelo cobrador para registrar a passagem.  Após oito meses tirei a carteira de motorista. Saí da empresa e por oito anos trabalhei como motorista de caminhão. O primeiro caminhão que fui dirigir foi um Mercedes-Benz, modelo 1519. Trabalhei com Scania, com o Mercedes 1520, Alfa-Romeu. Atualmente a tecnologia evoluiu muito, o próprio computador trava o veículo se ele não estiver em condições de sair rodando. Antigamente o painel mostrava óleo e água, isso quando acendia.

O uso do freio do caminhão exige muita técnica por parte do motorista?

Todo transporte, inclusive o urbano, tem o freio motor, é um sistema de freio que ajuda a reter o veículo. Se eu pegar uma serra, e descer o tempo todo pisando no freio, a lona de freio sofre um desgaste anormal, o ar que aciona o freio se estiver carregando direitinho não tem nada a ver. Imagine 40.000 toneladas descendo a Serra de Petrópolis, que considero uma das mais acentuadas do país, o motorista tem que ser muito hábil, descer em baixinha velocidade, o freio motor e o freio a ar é conjugado, portanto a velocidade tem quer muito lenta na descida. Vemos caminhões de alto custo sendo conduzidos por motoristas que apesar da elevada responsabilidade que assumem, recebem uma remuneração totalmente inadequada. Muitos acidentes que ocorrem hoje poderiam ser evitados se não submetessem os motoristas a uma carga horária de trabalho acima da capacidade suportável.

Mas recentemente foi decretada uma lei que regulamenta o tempo de trabalho e o tempo de descanso a cada jornada do motorista.

Infelizmente é uma lei ainda impraticável por falta de infra-estrutura nas estradas. Se um motorista para em um acostamento para descansar ele está sujeito a acidentes. Se você for de Piracicaba à Brasília, quantos pontos de parada você encontrará para jantar e descansar? Não existem em números suficientes! Outro fator é que os motoristas ganham por produtividade, quando deveriam ter um salário fixo digno, que não os submetessem a correr e oferecer riscos nas estradas. Um caminhoneiro ganha R$ 1.460,00 reais na carteira, você acha que ele pode parar de rodar às 18 horas para seguir viagem no dia seguinte? Ele tem que seguir para ganhar comissão sobre a produtividade. Existe de fato uma fiscalização que abrange a todos? A lei foi feita para o caminhão não rodar, mas não pensaram enquanto o motorista irá ganhar.

O sindicato do qual o senhor é presidente, o SINTTRANSP, abrange só o transporte de pessoas?

Só transporte urbano, de passageiros.

Qual é a carga horária média de um motorista que dirige ônibus urbano?

Alguns dirigem cerca de 8, 9 a 10 horas diariamente. Só que existe um problema sério, existe ônibus que passam nas casas dos motoristas, transportando-os para a garagem a fim de que possa iniciar o trabalho, cada um dirigindo o seu ônibus. O primeiro motorista que toma o ônibus que o conduzirá até a garagem, tem que levantar às duas horas e quarenta minutos da manhã. Esse ônibus que os apanha é chamado pelos motoristas como “negreiro”, um tema pejorativo que abomino e usado há muitos anos. Tem oito motoristas que moram em Artemis. Às três horas da manhã passa o carro (ônibus) que os apanha lá. Em seguida o carro vai até a Balbo, no Sonia, no Parque Orlanda, no IAA, ele chega na garagem as quatro horas e dez minutos da manhã. Com isso o primeiro motorista que entrou nesse ônibus, foi transportado por uma hora e vinte minutos ou uma hora e meia. A noite se dá o mesmo processo, ou seja, em média para ir trabalhar ele andou quase três horas como passageiro de ônibus dirigindo-se ao seu trabalho. A carga horária do motorista entre sair e voltar para casa é de no mínimo doze horas por dia. Infelizmente não é todo mundo que tem um carro, uma moto, e vai deixar parado seu veículo onde?

O senhor considera que o motorista de ônibus urbano sofre restrições?

Considero que ele acaba sendo discriminado, se for a uma festa de aniversário, ou a uma reunião familiar, se for dormir a meia noite às três horas da manhã tem que estar pronto para ir trabalhar. Ele não tem muito lazer junto a família. Na Copa do Mundo muitos funcionários param, alguns até horas antes de iniciar o jogo. O motorista não pode parar. Isso acontece também no natal, ano novo. Só aqueles cuja folga coincida com esses eventos é que podem usufruir junto a família.

O senhor é o primeiro presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Transporte Urbano de Piracicaba e Região?

De transportes urbanos sou. Anteriormente era ligado ao Sindicato dos Condutores Rodoviários de Piracicaba.

O senhor veio para Piracicaba em que ano?

Eu vim para Piracicaba no dia 29 de outubro de 1988. Tinha uns conhecidos aqui, vim, gostei da cidade e aqui fiquei. Sou casado em segundas núpcias com Valdenia Muniz Soares. Sou pai de cinco filhos, sendo dois do segundo casamento e três do primeiro.

Chegando a Piracicaba em que bairro o senhor foi morar?

Morei na Balbo, no inicio demorei um ano para conseguir emprego como motorista. Nesse período fiz um pouco de tudo, trabalhei como servente de pedreiro, em demolição de casas antigas, no dia 16 de outubro de 1989 fui trabalhar como motorista na Auto Ônibus Paulicéia. Fiz muitas linhas, a linha do Bairro Verde eu adorava fazer.

Em São Paulo o senhor trabalhou em várias empresas de ônibus?

Trabalhei também na CMTC Companhia Municipal de Transportes Coletivos. Em São Paulo dirigi inclusive onibus elétrico, fazia a linha de São Mateus até a Praça João Mendes. Quando chovia, as vezes ao passar pela chave que existe na fiação aérea, o contato desengatava, com um varão, debaixo de chuva tinha que encaixar o contato na rede aérea. Geralmente o cobrador não tinha como deixar a roleta, o motorista é quem tinha que fazer aquele serviço. Eu não gostava muito de dirigir onibus elétrico.

O onibus elétrico é mais rápido do que o onibus a diesel?

Aquilo é um vagão de metrô. Pisou vai embora! O sistema de freio deles é inimaginável. Para instantaneamente. Tem o freio elétrico e o freio mecânico.

O senhor fez algum curso especial para dirigir onibus elétrico?

Tem que ter um treinamento específico. Para mim a CMTC foi uma das maiores e melhores empresas que existiu no Estado de São Paulo. Permaneci na CMTC de 1981 a 1988. Era uma empresa com cerca de 25.000 funcionários.

O senhor conheceu Jânio Quadros?

Todo prefeito era presidente da CMTC. Jânio foi o melhor presidente dessa empresa. Ele sempre negociava com o sindicato, dizia que não queria o sindicato na sua porta. Fazia visitas de surpresa na CMTC. Foi muito bom. Lembro-me também do Mário Covas.

Quando o senhor passou a ser motorista de ônibus em Piracicaba, estranhou muito?

Os modelos de ônibus eu já conhecia de São Paulo. O que me chamou a atenção era o tempo para almoçar: de sete a dez minutos. O órgão municipal responsável pelo trânsito na época não dimensionou junto ao trabalhador a forma de idealizar o horário. Quando eu já estava como presidente do sindicato, conseguimos em comum acordo com os empresários e junto aos órgãos responsáveis, estabelecer um horário de refeição para o motorista.

Quando foi criado o Sindicato dos Trabalhadores em Transporte Urbano de Piracicaba e Região?

O inicio foi como Associação dos Motoristas de Transportes Urbanos em 17 de agosto de 1998. Após um longo período de negociações, em 2004 a documentação foi oficializada, A Carta Sindical data de 12 de julho de 2007.

Porque houve essa separação do Sindicado dos Condutores Rodoviários de Piracicaba?

Na realidade eu comecei a associação no dia 21 de setembro de 1996. Quando eu trabalhei na CMTC tinha um cobrador que trabalhava comigo e era diretor do sindicato. Eu via sua luta. Ao pensar em montar a Associação, recebi o apoio de vários companheiros de outras localidades. O Sr. Laerte Valvassori no meu entender foi um dos maiores sindicalistas patronais. Houve um desentendimento sobre o pagamento de horas extras. Nós prosseguimos trabalhando normalmente por sete horas e vinte minutos diariamente. Não deixamos a população sem transporte até as sete horas e meia da noite. Dali em diante não havia mais ônibus circulando pela cidade. Isso durou uma semana.

Quantos motoristas integram o sindicato?

O transporte de Piracicaba atualmente tem de 650 a 700 trabalhadores. Abrange Piracicaba, Rio das Pedras, Charqueada, Águas de São Pedro e São Pedro.

O senhor tem algum salário pago pelo sindicato?

Não. Sou funcionário registrado na Empresa Beira Rio. Somos dezesseis diretores. Afastados, que se dedicam ao sindicato são cinco. Somos filiados a CUT. Quando iniciei o sindicato os associados não tinham tíquete de refeição, a cesta básica era bem fraquinha. Temos dois cabeleireiros, dentistas, convênio médico com a Amhpla, Santa Casa Saúde, inclusive para os motoristas aposentados que representam de 10 a 15 por cento dos trabalhadores no transporte.

Com que idade o motorista se aposenta?

Em muitas cidades só pode ser contratatados motoristas com no máximo 45 anos de idade. Nós temos em Piracicaba motoristas com 65,66, anos, tinha um que aos 72 anos trabalhava ainda. E era muito competente, mais até do que alguns bem mais jovens. Piracicaba é a unica cidade que não impoem limite de idade para trabalhar.

O motorista de onibus sofre a tensão natural do trânsito e a presão interna dos passageiros.

Eu gostaria muito de ter a oportunidade de ter um reporter acompanhando um dia de um motorista de onibus, desde o momento em que ele sai da casa dele até quando retorna. Tenho sérias dúvidas se o reporter consiguirá completar o dia ao lado do motorista. A tensão é muito grande.

Em Piracicaba os onibus tem cobradores?

Não tem cobradores. É feita a venda a bordo. Antigamente não havia esse sistema, uma pessoa residente em outra cidade ao chegar a Piracicaba não tinha como se locomover a não ser que fosse até o terminal adquirir cartão de transporte. Dinheiro não era aceito para pagar a passagem no próprio onibus. Isso gerou muito conflito entre motoristas e passageiros. Em 2007 criei a sugestão do cartão, o motorista passou a vender o cartão no onibus. A passagem de onibus em Piracicaba custa R$ 2,95.

Quantos carros (onibus) correm por dia em Piracicaba?

São 218 carros em 103 linhas. Atigamente havia várias empreseas, com a ultima licitação existe apenas uma empresa responsável por todas elas. Os veículos estarão em uma única garagem, em Santa Terezinha. Tudo indica que deverá ficar melhor a forma de dialogar, inclusive acertar horários de linhas.

O Sindicato dos Trabalhadores em Transporte Urbano de Piracicaba e Região recentemente realizou algumas conquistas inéditas aos seus associados?

É importante salientar que o nosso sindicato de Piracicaba foi o único que sobresaiu em conquistas realizadas, ultrapassando seus congeneres. Realizamos uma grande campanha, resultando no maior reajuste da categoria, 10% sobre o salário. Reajuste de 13,30% no vale refeição, reajuste de 18,5% na cesta básica, reajuste de 23,5 % no Plano de Lucros e Resultados. O vale refeição será fornecido inclusive quando o trabalhador estiver em férias.

sexta-feira, junho 13, 2014

GERALDO CLARET DE MELLO AYRES


PROGRAMA PIRACICABA HISTÓRIAS E MEMÓRIAS
JOÃO UMBERTO NASSIF
Jornalista e Radialista
joaonassif@gmail.com
Sábado 07 de junho de 2014.
Entrevista: Publicada aos sábados no caderno de domingo da Tribuna Piracicabana
As entrevistas também podem ser acessadas através dos seguintes endereços eletrônicos:
http://blognassif.blogspot.com/

ENTREVISTADO: GERALDO CLARET DE MELLO AYRES

 

Geraldo Claret de Mello Ayres nasceu a 22 de outubro de 1928 em Pirassununga, é filho de Elias de Mello Ayres e Maria Amélia de Aguiar Ayres que de 1920 a 1936 moraram e trabalharam em Pirassununga e tiveram os filhos: Maria Aparecida, Maria Benedita, Maria Cecília, Maria Estela, que foi freira, e Geraldo.

Qual era a atividade dos seus pais em Pirassununga?

Meu pai era professor de Biologia Educacional da Escola Normal Oficial de Pirassununga e minha mãe professora no Grupo Escolar Anexo. Em 1936 os dois vieram para Piracicaba, nessa época eu tinha oito anos de vida. Cheguei a cursar o primeiro ano da Escola Normal Oficial de Pirassununga, hoje Instituto de Educação de Pirassununga. Minha primeira professora, que me alfabetizou foi a professora Maria das Dores Pinto, conhecida como “Dona Dora”.

Em que local seus pais vieram morar em Piracicaba?

Meu pai veio e adquiriu a casa na Rua José Pinto de Almeida entre a Rua Prudente de Moraes e Rua São José. Essa casa e mais outra ao lado foram recentemente demolidas dando lugar a um novo edifício.

O pai do senhor veio exercer a função de professor?

Ele veio lecionar na Escola Normal Oficial de Piracicaba, mais tarde denominada “Sud Mennucci”. Minha mãe era professora adjunta no Curso Primário Anexo da Escola Normal Oficial. É importante salientar que eles mudaram para Piracicaba em 1936, meus pais não tiveram nenhum ganho extra como premio de loteria, herança, eles, um casal de professores, adquiriram com seus salários uma das 10 casas mais bonitas de Piracicaba. Atualmente isso é impossível, com isso nota-se a degradação da função do professor.

Em Piracicaba o senhor matriculou-se em que escola?

Em Piracicaba passei a estudar o segundo ano do curso primário, tenho uma característica, fui primeiro aluno de ponta a ponta. Tenho boletim escolar guardado, as professoras escreviam “100 com louvor”.  O aluno segundo colocado era nota 100. Formei-me no quarto ano no Curso Primário Anexo a Escola Normal Oficial de Piracicaba

A segunda professora primária do senhor qual era o nome dela?

Foi Hercília Junqueira, conhecida como “Dona Ziloca”. Ela foi também a minha professora de terceiro ano. No quarto ano foi a Dona Cecita, o nome dela era Maria Cecília Almeida. Em setembro ela aposentou-se, foi substituída pelo professor Mário Gatti, cuja filha mais tarde foi minha aluna.

Qual foi a próxima etapa?

Eu fiz o ginásio, fui cursar no Externato São José, a sessão masculina do Colégio Assunção. Na época localizado a Rua D.Pedro II esquina com a Rua Alferes José Caetano, prédio onde mais tarde funcionou a FOP – Faculdade de Odontologia de Piracicaba. Lá onde cursei o ginásio depois fui ser professor titular. O Externato São José era administrado pelas Irmãs de São José, com casa provincial em Itu, mas de origem francesa. O Colégio Piracicabano estava se expandindo, de filosofia metodista, o bispo pediu às irmãs que enquanto não viesse à Piracicaba o Colégio Dom Bosco, de orientação católica, funcionasse ali no Colégio São José também a sessão masculina. Terminei a quarta série lá.

Como o senhor ia da sua casa até lá?

Ia a pé, sozinho, saia da Rua José Pinto de Almeida, era pertinho. A rua de casa não era asfaltada, passava o bonde, mas era com pedregulho. Após me formar no Externato São José tive que prestar um vestibularzinho. Uma seleção para ingressar no curso científico no Sud Mennuccci. O científico era uma prolongação do ginásio. Éramos 29 alunos que prestamos esse exame.

O senhor entrou em primeiro lugar?

Entrei em primeiro lugar. Foi uma glória muito grande. Durante o curso científico tive professores memoráveis: Hélio Penteado de Castro, Francisco Mariano da Costa, tive a primeira aula lecionada por Erotides de Campos.

Como era Erotides de Campos?

Ele dava aulas de química. Foi amicíssimo do meu pai. A amizade deles já tinha se iniciado em Pirassununga. Quando vieram para cá, continuaram a amizade, toda festinha, aniversário, ele e sua esposa Dona Tita, iam em casa. Quantas vezes vi o Erotides de Campos tocar piano em casa! Uma das músicas que ele fez em Pirassununga recebeu o nome de “As Covinhas do Teu Rosto”, em homenagem a minha irmã mais velha, que na ocasião era uma criança. Eu nem tinha nascido ainda. Sei pela tradição. Erotides era uma alma pura, não tinha vaidade, ele era mulato, cortava o cabelo bem rentinho, os amigos passavam a mão e brincavam dizendo: “-Como vai o cafezal ai!”. Ele perdeu os dentes, mandou fazer dentadura. Isso me lembro muito bem, ele dizia ao meu pai: “-Mello, dentadura é uma coisa ótima! Eu só tiro para mastigar!”. Faleceu nos braços do meu pai. A nossa casa era na Rua José Pinto de Almeida, na Prudente de Moraes era a casa dele e da Dona Tita. Após o almoço ele sentiu-se mal, estava acabando de fazer a capa de uma musica que ele fez em parceria com o meu pai. Música dele, letra do meu pai. A Dona Tia, esposa dele, quando viu que ele estava esquisito correu em casa buscar meu pai. Meu pai de pijama, saiu, correu lá, amparou a cabeça do Erotides, ele morreu. Foi assim. Após a morte de Erotides, uns quinze ou trinta dias depois, veio substituí-lo Demosthenes dos Santos Correa, fui aluno da primeira turma daquele professor extraordinário. Tive aula com Archimedes Dutra, Rossini Dutra filho do Benedito Dutra.

Como eles eram?

O Benedito Dutra gostava de ser músico, e era músico. O hino do Colégio Assunção a música é dele e a letra é do meu pai.  Benedito teve dois filhos, aos quais deu os nomes de dois musicos famosos: Rossini e Mozart, este era cirurgião dentista. O Rossini foi professor de música.

Após completar o cientifico o senhor foi fazer qual curso?

Eu não fiz cursinho. Tive um mês, dia sim, dia não, aulas de física, com o Ésio Apesato que era aluno da agronomia. Prestei o vestibular e entrei em décimo primeiro lugar na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, já era da USP. A Luiz de Queiroz foi criada em 1902, Luiz de Queiroz era proprietário da Fazenda São João da Montanha.  Não tinha filhos, doou para o Estado com a condição do Estado instalar ali uma escola agrícola. E foi intalada a escola agrícola. Tanto que por muito tempo foi denominada Escola Agrícola.  No próprio bonde vinha escrito o destino como Escola Agrícola. Quando Adhemar de Barros criou a USP em 1934, a Luiz de Queiroz foi incorporada na condição de instituto de ensino superior.

O senhor chegou a conhecer Walter Accorsi?

Fui aluno dele e depois amigo.

E os balancês, o senhor participou também?

Sim, tinha o balancê e o chaparê. O balancê era balançar o bonde no sentido do seu comprimento, principalmente quando tinha uma prova dificil os alunos queriam adiar, quando o bonde chegava na curva da Rua José Pinto de Almeida, com a Rua Marechal Deodoro, faziam o balancê, até levantar a roda do bonde do trilho, ai o pessoal da manutenção tinha que colocar o bonde no trilho, para isso tinham que usar um macaco, já não dava mais tempo de aplicarem a prova. Os professores também estavam no bonde, em sua maioria. Os alunos fazisso mais no “Cara-Dura”, como era chamado o reboque. Ia um bonde na frente puxando o “Cara-Dura”, logo atraz ia outro bonde, para na volta trazer a reboque o “Cara-Dura”. Com o balancê, paravam o “Cara-Dura”, o bonde da frente e o bonde de traz. Eu não sou e não fui um engenheiro agronomo vocacionado. Não sou de família de fazendeiros. Meu desejo era cursar Direito. Só que eu não tinha condições físicas nem econômicas para morar em São Paulo. Quando eu entrei no Grupo Escolar pesava 16 quilos, quando ingressei no ginásio pesava 24 quilos, quando fiz doutoramento na Esalq, já era casado, pesava 48 quilos. Um colega, Carlos Alberto Ditt,o pai dele era corretor de café em Santos, era magro, alto, pela midia ele viu que nos Estados Unidos um cidadão chamado Charles Atlas, era tão fraco que não aguentava andar de bicicleta. Esse cidadão criou uma série de exercícios físicos, que foi praticando até que dali alguns anos foi eleito Mister Estados Unidos. Ele vendia a programação dele por 200 dólares. Esse meu amigo, escreveu e recebeu esse manual, começou a praticar e ensinou alguns exercícios para mim. Fui um asmático terrivel. Após inumeras crises, um dia surgiu em Piracicaba, oriundo de São João da Boa Vista, o médico Dr. Sérgio Caruso, com dois tubinhos de cortisona, o remédio era Decadron, do laboratório Organon, nunca mais tive asma. Fui muito doentio. Não tive infância, adolescência nem juventude. Eu tinha a impressão de que não iria viver até os 30 anos. Talvez por isso eu tenha decidido casar cedo. O que Deus não permitiu que eu tivesse nessas épocas, que foi saúde, eu tive depois na maturidade. Eu me cuidei, quando percebi que tinha que dar um jeito, comecei a fazer exercícios, ginástica, andar, nadar, e até hoje faço exercícios. Faço musculação inclusive. Com 85 anos. Com isso tenho uma esplendida forma física e mental. Na Esalq tive professores extraordinários, Salvador Toledo Pizza, Walter Radamés Accorsi, Frederico Gustavo Brieger, José de Mello Moraes “Melinho”, Graner, Jaime Rocha de Almeida. Até o segundo ano eu não me encontrei muito na escola. Quando me casei, nas férias de julho do terceiro ano de Esalq, passei a ser um excelente aluno. Comecei a sentir atração pela química agrícola. Quando passei para o quarto ano e fui aluno do Dr. Jaime Rocha de Almeida, que foi o maior mestre que eu tive, me empolguei com a tecnologia do açucar e do alcool. Fui um excelente aluno do Dr. Jaime, o que representou um ponto crucial em minha vida. Em novembro de 1952, de uma turma de 57 alunos, oito se formaram por média, não precisaram fazer os exames finais. Eu estava entre esses oito. A escola nos deu uma declaração de que estávamos formados, só faltava a colação de grau. Já casado, fui atrás de emprego. Ganhei acho que a primeira bolsa do Instituto Brasileiro do Café, fui trabalhar no Instituto Agronômico de Campinas. Trabalhei um ano lá. Minha função era estudar a micro-anatomia do cafeeiro. Que até então não existia no Brasil. Isso foi em 1953. O diretor era o Dr. Carlos Arnaldo Krug. O chefe da botânica era uma pessoa extraordinária, Dalvo Mattos Dedecca. Comecei a notar que as pessoas que se dedicam a botânica, aos vegetais, ou são pessoas puras ou vão ficando mais puras. Fiz esse trabalho sob a orientação dele. Dois anos depois ele apresentou como tese na Esalq e recebeu o título de doutor. Por um ano eu morei em Campinas, aluguei uma casa lá, foi um drama para a minha esposa, lá ela não conhecia ninguém.

Como o senhor conheceu a sua esposa?

Conheci Jurema Rstom de Mello Ayres, filha de Isaac Jorge Rstom, proprietário da Loja Tigre, ao lado do Grupo Escolar Barão do Rio Branco, seus pais vieram adultos do Líbano. A conheci quadrando o jardim. Eu estava com mais dois amigos, e tinha duas moças uma mignom e outra mais avantajada. Após algumas voltas e alguns fleters eu disse ao meu amigo: “-Adolfo, com qual eu vou sair?”. Ele me disse: “-Arrisca a menorzinha, é tão delicadinha!”. Me aproximei e começou o namoro. Isso foi em 18 de dezembro de 1946.

Como foi a abordagem que o senhor fez?

Foi na cara de pau. Disse-lhe: “-Vamos dar uma saidinha?”. Ela ficou enrubescida, e saimos andar na Rua Governador Pedro de Toledo. Esse era o passeio.

Qual era a idade de ambos?

Eu tinha 18 anos e ela 13 anos e seis meses. Namoramos quatro anos e meio. Quando ela fez 18 e eu 22  nos casamos na Catedral de Santo Antonio. O padre era amigão meu, veio de Capivari, ele tinha sido aluno da minha mãe em Pirassununga, quando criança. Era o Conego Alécio Adani. O casamento civil foi realizado na casa do meu sogro, o juiz de paz foi até lá, estavam presentes seu pai, sua madrasta Lucia Ferro. Minha esposa foi morar na casa da minha irmã, pela regulamentação da igreja católica, jamais o noivo poderia conviver com a noiva antes de casar. Na quinta feira a tarde casamos no religioso.

Na época não era muito comum, mas chegaram a viajar em lua de mel?

Viajamos, fomos para Campinas. Fomos de taxi, eram poucos aqueles que tinham carro. Passamos uma semana e voltamos à Piracicaba. Fomos morar na casa dos meus pais, era uma casa muito grande, tinha quatro dormitórios. Três das minhas irmãs se casaram e a quarta foi para o convento. Naquele casarão ficamos meu pai, minha mãe e eu. Por um ano e meio, até me formar, moramos juntos com meus pais. Em 1952 eu me formei.

Quantos filhos o senhor  tem?

Quando eu ainda era estudante nasceu a minha primeira filha. Tivemos Maria Estela, Maria de Fátima, Elias e Lilian Regina.

Como o senhor voltou à Piracicaba?

A Dona Aurora, esposa do Dr. Jaime, encontrou-se com a minha mãe no ponto de bonde, atrás da Catedral, disse-lhe: “- Dona Amélia, o seu filho Geraldo está bem em Campinas?”. Tem uma vaga aqui com o Jaime. Tenho certeza de que o Dr. Jaime vai querer ele no departamento. Vim para ser assistente do Dr. Jaime Rocha de Almeida. Vim morar ao lado da casa do meu pai. Nese meio tempo eu ganhei uma bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) para ficar um ano no departamento de bioquímica da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da USP.

Como agrônomo o que o senhor foi fazer em uma escola de medicina?

Fui indicado para a bioquimica, bio é vida, quimica estuda a matéria e suas transformações. Bioquimica estuda a matéria e suas transformações que acontecem nos seres vivos. Estuda todos os componentes dos seres vivos. Seja uma bactéria, um virus, uma levedura, um fungo, vegetal, animal, água, peixes.

Mas esse tipo de estudo não está mais relacionado a medicina do que a agronomia?

A bioquimica é uma ciência relativamente nova, não tem ainda 150 anos. Mas se desenvoveu tanto que uma pesquisa de um professor eminente de Curitiba, Metry Bacila, de quem fui aluno, ele fez um levantamento na década de 60, de todos os trabalhos científicos publicados no mundo, 70% é de bioquímica. A bioquímica estuda, faz o que pode para conhecer a chamada matéria viva. Fisiologia é bioquímica. Todo fenômeno biológico é bioquímica em sua essência. Ao dobrar um dedo da mão, realizo uma contração muscular, isso é fruto de um processo bioquímico. Digestão é um processo bioquímico. Reconstrução das nossas proteínas, nossos componentes todos é bioquímica. O estudo dos micro-organismos, a microbiologia é bioquímica. Não é tão importante a descrição do microorganismo, se era uma bactéria que tinha um revestimento tipo geléia, se tinha flagelo, se tinha um cílio. Muito mais importante é saber o que esse microorganismo faz. O que ele produz. Se é patógeno, se produz moléstias em nós, se é de interesse para a indústria. Os fármacos não criam funções, remédio nenhum faz milagre, por isso se chama remédio. Remédio remedeia, não cura. Se curasse 100% bastava dar uma injeção em um cadáver e ele ressuscitaria. A ação do remédio que é farmacodinâmica é bioquímica. A interação entre receptores nossos e medicamentos é bioquímica.  A genética clássica, de Mendel é válida, claro. Mas hoje genética é bioquímica. Sabe-se que toda proteína que os seres vivos sintetizam são realizadas através da codificação genética, essa codificação é que determina quais aminoácidos irão se ligar. Assim como com 25 letras você escreve uma biblioteca, com 20 e poucos aminoácidos a natureza constrói todas as proteínas do nosso universo. Cada vez que um organismo aceita uma proteína estranha ele aceita como um antígeno. Sintetiza outra proteína que é o anticorpo. Por defesa. Se eu sofro a agressão de um vírus da gripe, que é uma nucleoproteína aquilo é estranho ao meu organismo. Imediatamente meu organismo sintetiza anticorpos. As proteínas são essencialmente críticas para cada organismo. Toda ciência biológica dinâmica é bioquímica.

O senhor mudou-se com a sua família para Ribeirão Preto?

Fui com a minha esposa e a minha filha mais velha. Perdemos outra filha ainda muito nova. Lá foi gerado e gestado meu filho, que nasceu em Piracicaba. Ribeirão Preto foi uma fase muito agradável para mim. Representou um marco científico na minha vida. Esse meu filho, Elias de Mello Ayres Neto, é musicista, foi solo da orquestra do Maestro Ernest Mahle, com 17 anos e meio, prestou exame em cinco faculdades de medicina, entrou nas cinco. Sem fazer cursinho. Escolheu a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP. Cursando medicina ainda dava aulas de flauta. Tocou na orquestra de Ribeirão Preto. Formou-se, fez três anos de residência em cardiologia em Ribeirão Preto. Passados três anos ele foi indicado ara ficar dois anos com o Dr. Jatene e equipe.

O senhor voltou para Piracicaba após o período em que permaneceu em Ribeirão Preto?

Voltei e fiquei no Instituto Zimotécnico, na Esalq, zimotécnico estuda a técnica da fermentação, que foi um sonho concretizado em parte, do Dr. Jaime Rocha de Almeida.

O objetivo era melhorar a fermentação da cana?

Até de outros tipos. Não deu tempo, ele faleceu com pouco mais de cinqüenta anos. Dr. Jaime era uma figura marcante, flautista da Orquestra Piracicabana, regida pelo Maestro Dutra, foi ele quem ensinou flauta à Celso Woltzenlogel que era filho de Luiz ( Lulu) Barbeiro que tinha salão de barbearia do lado da catedral.  O Celso Woltzenlogel hoje está em Londres, e é um dos maiores flautistas brasileiros.

O senhor continuou trabalhando no Instituto Zimotécnico?

Lá eu trabalhava em tempo parcial. Nesse meio tempo foi criada por força inclusive do Rotary Clube de Piracicaba e outras forças vivas da cidade a Faculdade de Odontologia de Piracicaba, como Instituto Isolado do Ensino Superior do Estado de São Paulo. No segundo ano do seu funcionamento, o catedrático contratado de fisiologia era o Dr. Ben-Hur Carvalhaes de Paiva, tinha consultório junto com Plinio Alves de Moraes que era prorietário de Laboratório de Análises Clinicas. Não sei como Dr. Plinio lembrou-se de mim, convidou-me para durante um ano trabalhar com ele, no sentido de aperfeiçoar a metodologia. Fui, fiquei uma semana no Hospital das Clínicas, só na parte laboratorial, fiquei mais uma semana no Laboratório Fleury, vim com toda metodologia nova e instalei no Laboratório do Dr. Plínio. Dr. Ben-Hur viu o meu trabalho. Passado um ano, quando na odontologia ele precisou de um bioquimico, e não tinha na cidade e região dentista credenciado para instalar e ministrar bioquimica, para dar uma disciplina ela tem que constar do seu curriculo. A maioria das faculdades de odontologia não tinha a disciplina de bioqimica. Fui convidado para instalar a bioquimica. Acumulei, ficava um período na Esalq e outro na FOP, instalando a disciplina, sob todos os aspectos, desde programação até laboratório, compra de material. Fui pioneiro como outros foram pioneiros nas outras disciplinas. Passado um ano o Dr. Jaime conseguiu tempo integral para os pesquisadores do Instituto Zimotécnico. Tive que deixar a FOP. Nesse meio tempo fui fazer cursos em Curitiba por quatro vezes, com bolsa, na Universidade Federal do Paraná com Metry Bacila e colaboradores. Foi quando o primeiro diretor da FOP, Carlos Henrique Robertson Liberalli, que era carioca, com sotaque característico ( Dr. Geraldo Claret o interpreta com perfeição), disse-me: “ – Mello Ayres! Você vai ser professor de bioquímica!”. Disse-lhe que bioquimica eu tinha consciênca de que sabia um pouco, agora fisiologia eu apenas estudei. Com seu sotaque carioca, Professor Liberalli disse-me: “- É mais fácil um bioquímico estudar fisiologia do que um fisiologista estudar bioquimica!”. Assim passei mais um ano acumulando, após um ano fui graças a Deus muito bem aceito pelos cirurgiões-dentistas, por todos os profesores, funcionários, alunos da FOP, dali um ano eu tive coragem, pedi demissão da USP e passei para a Faculdade de Odontologia, como Professor Catedrático Contratado. Responsável pela fisiologia e bioquimica. Naquele tempo havia a Escolinha Walita que ensinava receitas de bolos para as madames para vender material. Apelidaram a FOP de Escolinha Walita. Acharam que era uma escolinha incipiente. Chegaram a me parar na rua dizendo: “- Geraldo! Você vai sair da USP para ser profesor na Escolinha Walita?”. Disse: “- Vou! Sabe por que? Porque nós vamos crescer juntos!”. A minha profecia, que era compartilhada por outros, se concretizou. Fiquei na Ododontologia, fui muito bem aceito, fiz toda a carreira universitária, me aposentei na posição mais alta: professor titular. Fui pioneiro da bioquimica, como Ben-Hur foi pioneiro da fisiologia, Nobilo na protese, Merzel na anatomia.

As dificuldades foram grandes?

Muitas. Uma delas foi quando o Governador Adhemar de Barros deu um aumento substancial para a USP e não deu para os institutos isolados de Piracicaba, Araçatuba, Bauru, Ribeirão Preto, Araraquara, São José dos Campos, Rio Claro. Era um absurdo o Estado manter dois niveis salariais para o ensino superior. Foi criada a Comissão dos Institutos Isolados do Ensino Superior do Estado de São Paulo o Merzel era o presidente e eu era o secretário. Sempre fui idealista. Me empolguei nessa luta e viajei por muitas cidades onde havia Institutos Isolados, arrebanhando a turma para fazer greve. Assembléias memoráveis que varavam as madrugadas. A luta foi vencida, saiu a equiparação. O professor Raphael Lia Rolfsen que me conheceu nessa movimentação toda em Araraquara, passando pelo gabinete Enio Rocha, funcionário de confiança de Adhemar de Barros, funcionava como “reitorzinho” dessas faculdades, tinha sobre a sua mesa o meu nome e o do Merzel para sermos dispensados. Dr. Raphael imediatamente tomou partido a nosso favor, afirmando que éramos dois rofessors dignos, competentes e honestos. Fiquei sabendo disso mais tarde.

 

sábado, maio 31, 2014

MARLY TERESINHA PEREIRA, LUCAS TEIXEIRA FRANCO DE MORAES, TXANA MASHA E TXANA DASU (CONTINUAÇÃO)


PROGRAMA PIRACICABA HISTÓRIAS E MEMÓRIAS
JOÃO UMBERTO NASSIF
Jornalista e Radialista
joaonassif@gmail.com
Sábado 31 de maio de 2014.
Entrevista: Publicada aos sábados no caderno de domingo da Tribuna Piracicabana
As entrevistas também podem ser acessadas através dos seguintes endereços eletrônicos:
http://blognassif.blogspot.com/



ENTREVISTADOS: MARLY TERESINHA PEREIRA, LUCAS TEIXEIRA FRANCO DE MORAES, TXANA MASHA E TXANA DASU.

(CONTINUAÇÃO)

Txana Masha você tem filhos?

Eu me casei com dezenove anos, hoje tenho 33 anos, sou pai de três filhos, o mais velho com oito anos, duas meninas uma com cinco outra com dois anos.

Os pais acertam os casamentos dos seus filhos ou os filhos tem o direito de livre escolha?

Sempre há um elogio, quando o jovem é bom pescador, bom caçador, trabalhador, ativo em todas as coisas, é preferido à filha de um pajé.

É permitido ter mais de uma esposa?

Pode ter até três esposas, mas não de famílias diferentes, as três são irmãs. Não pode casar com moça de outra família.



Existe o risco de casamentos consangüíneos?

Somos formados por dois clãs: inu e ruá, que significa povo da onça e povo da anta. Como inu eu não posso casar com inani. Pode ocorrer de gerar pessoas deficientes por causa da consangüinidade. Isso é uma tradição fruto de conhecimentos e saberes ancestrais que permanecem até hoje.

Qual cargo você ocupa na aldeia?

Sou professor bilíngüe, ensino a língua indígena e o português.  Na fronteira temos ainda indígenas que vivem isolados.

Qual é a alimentação básica?

É a mandioca, milho de várias espécies, banana.

Vocês usam a bebida extraída da mandioca ou milho fermentado?

A bebida fermenta é ingerida por outro povo. Nós não consumimos álcool. Geralmente essas tribos utilizam o álcool em rituais de festas, alegrias.

Vocês têm energia elétrica?

Na aldeia de Txana Dasu tem. Na minha não, ela fica situada há quatro dias rio acima de barco.

Isso significa que não tem acesso a nenhuma tecnologia como telefone, televisão, computador?

Não temos. Não dispomos nem de gerador de energia. Sentimos falta pela dificuldade de comunicação.


O sepultamento é normal?

Sepultamos em uma cova, o falecido é velado um dia, uma noite e metade de um dia. O cadáver é sepultado envolto em uma rede de tecido, ou até mesmo em caixão de madeira, rústico.

Como é a relação de vocês com os brancos que tem terras nas divisas?

A relação hoje é de unificar. Às vezes sofremos algumas invasões, principalmente quando alguns vizinhos que já cultivaram toda a área que lhes pertence, estão sem caça, eles então adentram nosso território em busca da caça. Ou pescar em rio dentro de território indígena.  Mantemos o controle, para nós o supermercado é a floresta, os rios. Nós produzimos muita banana, pupunha, com essas e outras rendas adquirimos na cidade material que precisamos na tribo, agulhas, pregos, ferramentas, enfim produtos industrializados necessários à nossa sobrevivência.

Txana Masha você consegue ver o espírito da pessoa?

Consigo. Temos medicina que vai muito mais além. Sai desse mundo, vai para o mundo do astral e encontra o que está ao redor.

Como faço para manter contato com vocês?

Só se você usar a medicina que usamos, a Unixipan também conhecido como Ayahuasca[][] Santo Daime, Você pode beber aqui e podemos nos encontramos no astral. Em Piracicaba você pode se comunicar comigo ou com quem você mantém contato na tribo. Fazendo o ritual, no cantico que eu fizer, você e o povo indigena ao seu redor. Você se desloca no tempo e no espaço. Encanta-se e se desencanta, consegue entrar no astral, no meio do rio, dentro da terra.

Isso significa que você tem condições de saber o que aconteerá amanhã?

Sim, sabemos.


Qual é o indice de moléstias graves na tribo?

Para nós kuni kuî não existia doença. A doença é dos animais. A doença só é transmitida daquilo que comemos e bebemos. As medicinas já foram pessoas como nós, que não se transformaram, não se encarnaram.

Por exemplo, uma pessoa que tem problemas cardiacos, de onde pode ser a sua origem?

Vários tipos de animais têm doenças de coração, o coração da cotia, do gado, do porco, muitas vezes você come indiretamente esses alimentos através de lingüiças, salsichas. Nós temos as medicinas para isso. Para coração crescido.

Vocês têm uma farmácia na floresta?

Temos uma farmácia viva. Trazemos de pontos distantes da floresta e plantamos ao redor de onde estamos. Qualquer sintoma nós temos o remédio a nossa disposição. Tem toda uma consulta. As coisas têm um inicio um meio e um fim.  Nós vemos porque aquilo aconteceu e como tem que ser resolvido aquele problema.


Se eu for até a sua tribo você pode me receber?

Com certeza! Estamos de braços abertos para um ajudar ao outro. A nossa formação é para isso.

Quanto tempo eu preciso permanecer lá me tratando?

Vai depender do estado em que você se encontra. Irá sair de lá quando não sentir mais nada.

Você tem alguma experiência nesse sentido? Já curaram alguém?

Várias pessoas.

Vocês cobram alguma coisa?

Não cobramos nada, sabemos que vida não tem preço.

Há como tratar uma picada de cobra?

Claro! Para cada tipo de veneno tem uma pratica de medicina própria.


Integrante da mesa a Dra.Marly Teresinha Pereira pergunta a opinião do médico cirurgião Dr. Olivio Alleoni, também integrante da mesa e que participa das gravações, sobre sua forma de ver as plantas fitoterápicas?

Dr. Olívio responde que em sua opinião o fitoterapico está muito mal explorado.  A Universidade da Bahia talvez seja a única que tenha estudo e transmissões de conhecimento de fitoterapia.  Walter Accorsi, sua filha Walterly Accorsi sempre fizeram todo esforço nesse sentido, a Esalq ajuda dentro de todas as suas possibilidades, a fitoterapia provavelmente teria mais avanço se estivesse anexo aos seus laboratórios centros de pesquisas médicas para testes de drogas.  A alimentação adequada é um dos elementos da medicina preventiva. Em depoimento a Dra. Teresinha falou sobre uma doença grave, que a obrigou a passar por um processo cirúrgico e posteriormente a um tratamento bastante severo, que ela por opção própria substituiu por tratamento fitoterápico. O resultado foi a cura esperada, pois isso já faz cinco anos e não houve nova manifestação dessa doença grave.

O formando pela Esalq, que tem participação ativa na vinda dos índios a Piracicaba, Lucas Teixeira Franco de Moraes fez o comentário a seguir.

A alimentação é um estudo afeito a Esalq, e as doenças em sua maioria decorrentes da  má alimentação.  Sua atuação deve ser preventiva, evitar que a doença ocorra.

A impressão é que nenhuma indústria farmacêutica tem interesse em desenvolver a fitoterapia, por questões obvias. Vocês recebem a visita de estrangeiros na tribo?

Raramente nos visitam.

Nós estamos muito aquém da compreensão da natureza? O indígena tem uma compreensão maior do que o homem branco?

Cada povo é único.  Não existe povo sem cultura e nem cultura sem povo. Sabemos que a cultura é a vida de um povo. Cada povo entende qual é a melhor forma para si. Hoje o mundo está caótico, tem alguma coisa que é de grande importância para mim, mas para a sociedade ela perde até o valor. Considera como algo negativo. Temos um país muito rico em sua biodiversidade, mas falta isso ser explorado. O índio sempre foi sujeitado, sempre teve alguém que falou pelo índio.

O branco sempre viu o índio como objeto de curiosidade, quase como culturalmente inferior. Hoje percebemos que a espiritualidade do indígena está muito acima da do branco.

É o caso da medicina, enquanto o homem branco, para acreditar tem que levar a um laboratório fazer pesquisas, nós já sabemos que aquela medicina serve para aquilo. Levado da floresta para esses lugares de pesquisa eles agregam outras substâncias. Sabemos que uma coisa misturada com outra é uma química. Vai provocar outra reação. Ele controla a doença, mas prejudica outro órgão. O caso do diabetes ou outras doenças do sangue, a pessoa começa a comer em excesso, ganha peso, o que ela come não é um alimento natural, é um produto industrializado. Vai causando uma gordura artificial. O resultado é o diabetes e outros problemas que acometem o ser humano.

Vocês não comem doces?

Nós preservamos muito o doce. Não comemos todos os dias o doce, açúcar. Quando tiramos o caldo da cana e bebemos, imediatamente usamos uma planta que impeça o surgimento do diabetes. Protege e limpa o corpo da pessoa, física, espiritual e psicologicamente. Por isso temos muita saúde, quando aparece algum problema é porque a pessoa não cuidou bem da sua saúde. Para isso temos medicinas específicas para tratamento desse problema. Se a pessoa tem um problema de coração, lá ela terá uma dieta, onde irá comer esses tipos de alimentos 

Txana Masha passa a expor sobre a cura de um doente.

Temos vários exemplos, o meu sogro Vicente Saboia, da liderança tradicional, é um desses casos. Temos exemplos de pessoas com doenças graves que foram curadas.

Se eu simplesmente ingerir o Daime irá funcionar?

Tem que ter alguém para explicar, orientar, é uma das medicinas, que é um eixo de todos os conhecimentos. Um daimista é a pessoa mais sábia de um grupo. O daime é usado como remédio.  O Mestre Irineu (Raimundo Irineu Serra, fundador da doutrina religiosa do Santo Daime que usa como sacramento a bebida chamada ayahuasca, batizada por ele de Daime) quando teve contato com o Daime viu que era utilizada pelo indio, ele consagrou e recebeu dos astrais a doutrinação. Após Mestre Irineu vieram outros mestres.  Onde tem Daime tem cura,sabedoria e purificação. Só deve ser ingerido mediante a orientação de quem domina o conhecimento, senão como toda medicina utilizada sem orientação pode trazer consequências inesperadas. Tem doenças que só o médico pode curar, assim como tem doenças que só o pagé pode curar. Algumas doenças são enviadas por espíritos visiveis ou invisiveis.

Vocês usam alguns amuletos para proteção contra o mal?

São os colares com simbolos da floresta. Outra forma é pela dieta. Nós estamos aqui com um objetivo, que esses valores sejam reconhecidos pela sociedade.

O acadêmico Lucas Teixeira Franco de Moraes fala a respeito da Ayahuasca.

Ela é patrimonio cultural brasileiro, não é considerada droga, há vários estudos da USP sobre a Ayahuasca, o uso dela é controlado, não pode ser comercializado, só pode ser utilizado para fins religiosos. Existe uma legislação a respeito.

Dra. Marly Teresinha Pereira a senhora esteve na selva?

Estive por três anos na floresta, quando fui tomar o Daime foi interessante, outra pessoa  ingeriu, a primeira vez, colocaram uma certa quantia para que eu tomasse, quando foi recomendada uma quantia menor, com o passar do tempo continuei tomando já em uma quantidade um pouco maior. A Unicamp trouxe a ayahuasca da amazonia e fizeram todo um trabalho com dois grupos de mulheres em um estado psicológico bastante avançado, depressivo. Um grupo tratado com placebo e outro tratado com a ayahuasca, foi impressionante a rapidez que eles tiveram no comportamento delas comparando os dois grupos. A Unicamp já identificou qual é o principio que existe no chá, isso para eles já é claro. Funciona cientificamente. A lei brasileira é muito clara quanto a prescrição de medicamentos, é uma prerrogativa exclusiva do médico. O fato de ter um horto, no caso do branco, ele está impedido de prescrever um tratamento.  Boa parte do corpo médico é ainda reticente quanto ao tratatamento pela fitoterapia. Temos uma lei nacional, o Programa Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos já aprovada, deveria estar sendo implantada, todo posto de saúde é obrigado a ter as plantas medicinais para ofertar gratuitamente, e um médico com conhecimentos fitoterápicos também atendendo. Isso é lei. Temos uma resistencia muito grande, onde possivelmente o poder econômico cria uma barreira. A Fiocruz está trabalhando nisso, Glauco Villas-Boas é o responsável. Nós temos na Esalq alunos como o Lucas Teixeira Franco de Moraes que levam essa bandeira. Ha alguns anos na Esalq não se tocava nesse assunto. Hoje mudou o comportamento de muitos professores. O Dr. Walter Radamés Accorsi foi o pioneiro, depois surgiram vários professores trabalhando nessa linha. Já temos três médicos na cidade que estão se atentando para a questão do tratamento fitoterápico em doenças graves. Nossa idéia é montar junto com os médicos um posto de saúde municipal, já que a lei federal assim determina, para transformar esse local em um piloto. Temos o corpo médico. Buscamos o espaço fisico em algum posto de saúde. Estamos trazendo além do conhecimento indigena, o africano e o indiano. Juntar todas as correntes que trabalham com plantas medicinais.

Lucas como surgiu a idéia de promover a vinda do cacique e do pajé para transmitir os conhecimentos fitoterápicos?

Eu frequento o centro espitualista xamanico ancestral, situado em Juquitiba, na aldeia de Shiva. Consegui o contato deles através do Akaiê de descendência caramuru-tupinambá. A Aldeia de Shiva é um centro indigenista, tem um estudo da cultura indígena. O conhecimento tradicional dessas culturas vem sido perdido por pressões externas. O resgate dessas culturas tem muito a colaborar para os homens brancos, para os habitantes urbanos. É um conhecimento puro, ancestral. A essência é verdadeira. Esses índios sentem amor pelo que fazem, acreditam de fato. Não tem interesses externos nem ambições. São puros. Querem promover uma integração pacifica entre nós e eles. Por isso saem para divulgar a cultura deles. A Esalq é uma escola que trabalha com a terra, com o território brasileiro, com a produção alimentícia, tanto a ciência dos alimentos como com a parte de produção, economia, administração, biologia, são áreas que desenvolvem todos esses aspectos. Se a saúde do brasileiro for boa, através de uma alimentação correta, um bom ambiente, o ambiente urbano arborizado, com plantas dentro de casa, pássaros nas ruas, isso significa qualidade de vida para as pessoas. As pequenas culturas são muito importantes em uma alimentação saudável.  O acesso a esses alimentos acaba sendo dificultado às populações menos favorecidas. Hoje temos no Horto da Esalq 220 espécies do mundo inteiro. Temos capacidade de produzir esses produtos sem a necessidade de importá-los, como ocorre em parte atualmente. Há produtos com propriedades medicinais que são produzidos em outros países, e nós temos ainda aqueles originários do nosso país. Temos que aproveitar a oportunidade que os índios brasileiros nos oferecem de compartilhar seus conhecimentos sobre plantas nativas. Temos muito a aprender com eles, como viver de forma mais harmônica com a natureza.

 

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