PROGRAMA PIRACICABA HISTÓRIAS E MEMÓRIAS
JOÃO UMBERTO NASSIF
Jornalista e Radialista
joaonassif@gmail.com
Sábado 31 de maio de 2014.
JOÃO UMBERTO NASSIF
Jornalista e Radialista
joaonassif@gmail.com
Sábado 31 de maio de 2014.
Entrevista:
Publicada aos sábados no caderno de domingo da Tribuna Piracicabana
As entrevistas também podem ser acessadas através dos seguintes endereços eletrônicos:http://blognassif.blogspot.com/
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ENTREVISTADOS: MARLY TERESINHA PEREIRA, LUCAS TEIXEIRA FRANCO DE MORAES, TXANA MASHA E TXANA DASU.
(CONTINUAÇÃO)
Txana Masha
você tem filhos?
Eu me casei com
dezenove anos, hoje tenho 33 anos, sou pai de três filhos, o mais velho com
oito anos, duas meninas uma com cinco outra com dois anos.
Os pais acertam os
casamentos dos seus filhos ou os filhos tem o direito de livre escolha?
Sempre há um elogio,
quando o jovem é bom pescador, bom caçador, trabalhador, ativo em todas as
coisas, é preferido à filha de um pajé.
É permitido ter mais de
uma esposa?
Pode ter até três
esposas, mas não de famílias diferentes, as três são irmãs. Não pode casar com
moça de outra família.
Existe o risco de
casamentos consangüíneos?
Somos formados por dois
clãs: inu e ruá, que significa povo da onça e povo da anta. Como inu eu não
posso casar com inani. Pode ocorrer de gerar pessoas deficientes por causa da
consangüinidade. Isso é uma tradição fruto de conhecimentos e saberes
ancestrais que permanecem até hoje.
Qual cargo você ocupa
na aldeia?
Sou professor bilíngüe,
ensino a língua indígena e o português.
Na fronteira temos ainda indígenas que vivem isolados.
Qual é a alimentação
básica?
É a mandioca, milho de
várias espécies, banana.
Vocês usam a bebida
extraída da mandioca ou milho fermentado?
A bebida fermenta é
ingerida por outro povo. Nós não consumimos álcool. Geralmente essas tribos
utilizam o álcool em rituais de festas, alegrias.
Vocês têm energia
elétrica?
Na aldeia de Txana Dasu
tem. Na minha não, ela fica situada há quatro dias rio acima de barco.
Isso significa que não
tem acesso a nenhuma tecnologia como telefone, televisão, computador?
Não temos. Não dispomos
nem de gerador de energia. Sentimos falta pela dificuldade de comunicação.
O sepultamento é
normal?
Sepultamos em uma cova,
o falecido é velado um dia, uma noite e metade de um dia. O cadáver é sepultado
envolto em uma rede de tecido, ou até mesmo em caixão de madeira, rústico.
Como é a relação de
vocês com os brancos que tem terras nas divisas?
A relação hoje é de
unificar. Às vezes sofremos algumas invasões, principalmente quando alguns
vizinhos que já cultivaram toda a área que lhes pertence, estão sem caça, eles
então adentram nosso território em busca da caça. Ou pescar em rio dentro de
território indígena. Mantemos o controle,
para nós o supermercado é a floresta, os rios. Nós produzimos muita banana,
pupunha, com essas e outras rendas adquirimos na cidade material que precisamos
na tribo, agulhas, pregos, ferramentas, enfim produtos industrializados
necessários à nossa sobrevivência.
Txana Masha
você consegue ver o espírito da pessoa?
Consigo. Temos medicina que vai muito mais além. Sai desse mundo, vai
para o mundo do astral e encontra o que está ao redor.
Como faço
para manter contato com vocês?
Só se você usar a medicina
que usamos, a Unixipan também conhecido como Ayahuasca Santo Daime,
Você pode beber aqui e podemos nos encontramos no astral. Em Piracicaba você
pode se comunicar comigo ou com quem você mantém contato na tribo. Fazendo o
ritual, no cantico que eu fizer, você e o povo indigena ao seu redor. Você se
desloca no tempo e no espaço. Encanta-se e se desencanta, consegue entrar no
astral, no meio do rio, dentro da terra.
Isso significa que você tem
condições de saber o que aconteerá amanhã?
Sim, sabemos.
Qual é o indice de moléstias graves
na tribo?
Para nós kuni kuî não existia
doença. A doença é dos animais. A doença só é transmitida daquilo que comemos e
bebemos. As medicinas já foram pessoas como nós, que não se transformaram, não
se encarnaram.
Por exemplo, uma pessoa que tem
problemas cardiacos, de onde pode ser a sua origem?
Vários tipos de animais
têm doenças de coração, o coração da cotia, do gado, do porco, muitas vezes
você come indiretamente esses alimentos através de lingüiças, salsichas. Nós
temos as medicinas para isso. Para coração crescido.
Vocês têm uma farmácia
na floresta?
Temos uma farmácia
viva. Trazemos de pontos distantes da floresta e plantamos ao redor de onde
estamos. Qualquer sintoma nós temos o remédio a nossa disposição. Tem toda uma
consulta. As coisas têm um inicio um meio e um fim. Nós vemos porque aquilo aconteceu e como tem
que ser resolvido aquele problema.
Se eu for até a sua
tribo você pode me receber?
Com certeza! Estamos de
braços abertos para um ajudar ao outro. A nossa formação é para isso.
Quanto tempo eu preciso
permanecer lá me tratando?
Vai depender do estado
em que você se encontra. Irá sair de lá quando não sentir mais nada.
Você tem alguma
experiência nesse sentido? Já curaram alguém?
Várias pessoas.
Vocês cobram alguma
coisa?
Não cobramos nada,
sabemos que vida não tem preço.
Há como tratar uma
picada de cobra?
Claro! Para cada tipo
de veneno tem uma pratica de medicina própria.
Integrante da mesa a
Dra.Marly Teresinha Pereira pergunta a opinião do médico cirurgião Dr. Olivio
Alleoni, também integrante da mesa e que participa das gravações, sobre sua
forma de ver as plantas fitoterápicas?
Dr. Olívio responde que
em sua opinião o fitoterapico está muito mal explorado. A Universidade da Bahia talvez seja a única
que tenha estudo e transmissões de conhecimento de fitoterapia. Walter Accorsi, sua filha Walterly Accorsi
sempre fizeram todo esforço nesse sentido, a Esalq ajuda dentro de todas as
suas possibilidades, a fitoterapia provavelmente teria mais avanço se estivesse
anexo aos seus laboratórios centros de pesquisas médicas para testes de
drogas. A alimentação adequada é um dos
elementos da medicina preventiva. Em depoimento a Dra. Teresinha falou sobre
uma doença grave, que a obrigou a passar por um processo cirúrgico e
posteriormente a um tratamento bastante severo, que ela por opção própria
substituiu por tratamento fitoterápico. O resultado foi a cura esperada, pois
isso já faz cinco anos e não houve nova manifestação dessa doença grave.
O formando pela Esalq,
que tem participação ativa na vinda dos índios a Piracicaba, Lucas Teixeira
Franco de Moraes fez o comentário a seguir.
A alimentação é um
estudo afeito a Esalq, e as doenças em sua maioria decorrentes da má alimentação. Sua atuação deve ser preventiva, evitar que a
doença ocorra.
A impressão é que
nenhuma indústria farmacêutica tem interesse em desenvolver a fitoterapia, por
questões obvias. Vocês recebem a visita de estrangeiros na tribo?
Raramente nos visitam.
Nós estamos muito aquém
da compreensão da natureza? O indígena tem uma compreensão maior do que o homem
branco?
Cada povo é único. Não existe povo sem cultura e nem cultura sem
povo. Sabemos que a cultura é a vida de um povo. Cada povo entende qual é a
melhor forma para si. Hoje o mundo está caótico, tem alguma coisa que é de
grande importância para mim, mas para a sociedade ela perde até o valor.
Considera como algo negativo. Temos um país muito rico em sua biodiversidade,
mas falta isso ser explorado. O índio sempre foi sujeitado, sempre teve alguém
que falou pelo índio.
O branco sempre viu o
índio como objeto de curiosidade, quase como culturalmente inferior. Hoje
percebemos que a espiritualidade do indígena está muito acima da do branco.
É o caso da medicina,
enquanto o homem branco, para acreditar tem que levar a um laboratório fazer
pesquisas, nós já sabemos que aquela medicina serve para aquilo. Levado da
floresta para esses lugares de pesquisa eles agregam outras substâncias.
Sabemos que uma coisa misturada com outra é uma química. Vai provocar outra
reação. Ele controla a doença, mas prejudica outro órgão. O caso do diabetes ou
outras doenças do sangue, a pessoa começa a comer em excesso, ganha peso, o que
ela come não é um alimento natural, é um produto industrializado. Vai causando
uma gordura artificial. O resultado é o diabetes e outros problemas que
acometem o ser humano.
Vocês não comem doces?
Nós preservamos muito o
doce. Não comemos todos os dias o doce, açúcar. Quando tiramos o caldo da cana
e bebemos, imediatamente usamos uma planta que impeça o surgimento do diabetes.
Protege e limpa o corpo da pessoa, física, espiritual e psicologicamente. Por
isso temos muita saúde, quando aparece algum problema é porque a pessoa não
cuidou bem da sua saúde. Para isso temos medicinas específicas para tratamento
desse problema. Se a pessoa tem um problema de coração, lá ela terá uma dieta,
onde irá comer esses tipos de alimentos
Txana Masha
passa a expor sobre a cura de um doente.
Temos vários exemplos,
o meu sogro Vicente Saboia, da liderança tradicional, é um desses casos. Temos
exemplos de pessoas com doenças graves que foram curadas.
Se eu simplesmente
ingerir o Daime irá funcionar?
Tem que ter alguém para
explicar, orientar, é uma das medicinas, que é um eixo de todos os
conhecimentos. Um daimista é a pessoa mais sábia de um grupo. O daime é usado
como remédio. O Mestre Irineu (Raimundo Irineu Serra, fundador da doutrina religiosa do Santo Daime que usa como sacramento
a bebida chamada ayahuasca, batizada por ele de Daime) quando teve contato com o Daime viu que era utilizada pelo indio, ele
consagrou e recebeu dos astrais a doutrinação. Após Mestre Irineu vieram outros
mestres. Onde tem Daime tem
cura,sabedoria e purificação. Só deve ser ingerido mediante a orientação de
quem domina o conhecimento, senão como toda medicina utilizada sem orientação
pode trazer consequências inesperadas. Tem doenças que só o médico pode curar,
assim como tem doenças que só o pagé pode curar. Algumas doenças são enviadas
por espíritos visiveis ou invisiveis.
Vocês usam alguns amuletos para proteção contra o mal?
São os
colares com simbolos da floresta. Outra forma é pela dieta. Nós estamos aqui
com um objetivo, que esses valores sejam reconhecidos pela sociedade.
O acadêmico Lucas Teixeira Franco de
Moraes fala a respeito da Ayahuasca.
Ela é
patrimonio cultural brasileiro, não é considerada droga, há vários estudos da
USP sobre a Ayahuasca, o uso dela é
controlado, não pode ser comercializado, só pode ser utilizado para fins
religiosos. Existe uma legislação a respeito.
Dra. Marly
Teresinha Pereira a senhora esteve na selva?
Estive por três anos na floresta, quando fui tomar o Daime foi
interessante, outra pessoa ingeriu, a
primeira vez, colocaram uma certa quantia para que eu tomasse, quando foi
recomendada uma quantia menor, com o passar do tempo continuei tomando já em
uma quantidade um pouco maior. A Unicamp trouxe a ayahuasca da amazonia e fizeram todo um
trabalho com dois grupos de mulheres em um estado psicológico bastante
avançado, depressivo. Um grupo tratado com placebo e outro tratado com a
ayahuasca, foi impressionante a rapidez que eles tiveram no comportamento delas
comparando os dois grupos. A Unicamp já identificou qual é o principio que
existe no chá, isso para eles já é claro. Funciona cientificamente. A lei
brasileira é muito clara quanto a prescrição de medicamentos, é uma
prerrogativa exclusiva do médico. O fato de ter um horto, no caso do branco,
ele está impedido de prescrever um tratamento. Boa parte do corpo médico é ainda reticente
quanto ao tratatamento pela fitoterapia. Temos uma lei nacional, o Programa
Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos já aprovada, deveria estar sendo
implantada, todo posto de saúde é obrigado a ter as plantas medicinais para
ofertar gratuitamente, e um médico com conhecimentos fitoterápicos também
atendendo. Isso é lei. Temos uma resistencia muito grande, onde possivelmente o
poder econômico cria uma barreira. A Fiocruz está trabalhando nisso, Glauco Villas-Boas é o responsável. Nós temos na Esalq alunos como
o Lucas Teixeira Franco de Moraes que levam essa bandeira. Ha alguns anos na
Esalq não se tocava nesse assunto. Hoje mudou o comportamento de muitos
professores. O Dr. Walter Radamés Accorsi foi o pioneiro, depois surgiram
vários professores trabalhando nessa linha. Já temos três médicos na cidade que
estão se atentando para a questão do tratamento fitoterápico em doenças graves.
Nossa idéia é montar junto com os médicos um posto de saúde municipal, já que a
lei federal assim determina, para transformar esse local em um piloto. Temos o
corpo médico. Buscamos o espaço fisico em algum posto de saúde. Estamos
trazendo além do conhecimento indigena, o africano e o indiano. Juntar todas as
correntes que trabalham com plantas medicinais.
Lucas como surgiu a idéia de promover a vinda do cacique e do pajé para
transmitir os conhecimentos fitoterápicos?
Eu frequento o centro espitualista xamanico
ancestral, situado em Juquitiba, na aldeia de Shiva. Consegui o
contato deles através do Akaiê de descendência
caramuru-tupinambá. A Aldeia de Shiva é um centro indigenista, tem um estudo da
cultura indígena. O conhecimento tradicional dessas culturas vem sido perdido
por pressões externas. O resgate dessas culturas tem muito a colaborar para os
homens brancos, para os habitantes urbanos. É um conhecimento puro, ancestral.
A essência é verdadeira. Esses índios sentem amor pelo que fazem, acreditam de
fato. Não tem interesses externos nem ambições. São puros. Querem promover uma
integração pacifica entre nós e eles. Por isso saem para divulgar a cultura
deles. A Esalq é uma escola que trabalha com a terra, com o território
brasileiro, com a produção alimentícia, tanto a ciência dos alimentos como com
a parte de produção, economia, administração, biologia, são áreas que
desenvolvem todos esses aspectos. Se a saúde do brasileiro for boa, através de
uma alimentação correta, um bom ambiente, o ambiente urbano arborizado, com
plantas dentro de casa, pássaros nas ruas, isso significa qualidade de vida
para as pessoas. As pequenas culturas são muito importantes em uma alimentação
saudável. O acesso a esses alimentos
acaba sendo dificultado às populações menos favorecidas. Hoje temos no Horto da
Esalq 220 espécies do mundo inteiro. Temos capacidade de produzir esses
produtos sem a necessidade de importá-los, como ocorre em parte atualmente. Há
produtos com propriedades medicinais que são produzidos em outros países, e nós
temos ainda aqueles originários do nosso país. Temos que aproveitar a
oportunidade que os índios brasileiros nos oferecem de compartilhar seus
conhecimentos sobre plantas nativas. Temos muito a aprender com eles, como
viver de forma mais harmônica com a natureza.