segunda-feira, outubro 14, 2013

MARIA HELENA da SILVEIRA


PROGRAMA PIRACICABA HISTÓRIAS E MEMÓRIAS
JOÃO UMBERTO NASSIF
Jornalista e Radialista
joaonassif@gmail.com
Sábado 12 de outubro de 2013
Entrevista: Publicada aos sábados no caderno de domingo da Tribuna Piracicabana
As entrevistas também podem ser acessadas através dos seguintes endereços eletrônicos:
http://blognassif.blogspot.com/

ENTREVISTADA: MARIA HELENA da SILVEIRA

 


O livro “Uma História de Amor Eterno” é um tributo que Maria Helena Silveira fez em homenagem aos seus pais Manoel Sebastião da Silveira e Regina Beltrame. É um relato completo desde quando se conheceram até quando faleceram prestes a completarem um século de vida. A família dá seu testemunho de que a riqueza espiritual supera e muito, as dificuldades materiais. Manoel e Regina viveram 76 anos de feliz união.

Em que localidade você nasceu?

Nasci no bairro rural Peruca a 23 de janeiro de 1946. É um bairro situado na estrada que liga Piracicaba a Laranjal Paulista, passa por Formigueiro, bairro Vai e Vem, na Fazenda do Milhã, Fazenda Velha, Arraial de São Bento, Sítio Novo, até Laranjal Paulista. É conhecida como “Estrada por dentro”. É uma alternativa a estrada que vai por Tietê. Na época em que eu morava no sítio tinha o ônibus que chamávamos de jardineira, ligava Piracicaba a Laranjal Paulista.

Qual é o nome dos seus pais?

Meus pais são Manoel Sebastião da Silveira e Regina Beltrame. Tiveram 10 filhos: o primeiro filho da minha mãe morreu bebezinho, chamava-se Theotônio, depois vieram os filhos: Ana, Pedro, José, João Batista, Maria Helena, Sebastião Davi, Inês Aparecida, Antonio Carlos e Cacilda Isabel.

Seus pais eram proprietários do sítio onde trabalhavam?

Eles tinham um sítio que lhes pertencia, acabaram vendendo porque o sítio era pequeno, tinha que ficar plantando em terras terceirizadas. Os filhos foram crescendo e ele queria uma profissão para os filhos. Eu tinha 13 anos quando a minha família mudou-se para a cidade, já tinha cursado até o terceiro ano, minha professora era a Dona Lourdes, isso na Escola Mista do Bairro Peruca. No sítio não havia quarto ano.

Porque o bairro chamava-se Peruca?

Em decorrência de um senhor conhecido por Peruca, era dono de muita terra. Todos o chamavam de Seu Peruca, o bairro acabou sendo chamado de Peruca, ele tinha muitos meeiros. Havia uma colônia de casinhas dos meeiros dele. Eu ajudava minha mãe no serviço doméstico, meu pai tinha umas vacas leiteiras, lembro-me que ia prender os bezerros a tarde. Eu recolhia as vacas e os bezerros, ia a pé, porque não era muito longe. As vacas eram mansinhas, mansinhas. A primeira vaca que meu pai comprou quando mudamos nesse sítio, chamava-se Baia, ela tinha uma novilha chamada Prata. Depois ele adquiriu as vacas Nobreza e Rolinha. A essa altura a Prata já tinha criado, ele estava com quatro vacas de leite. Distribuía leite até para os vizinhos,  

Aos treze anos juntamente com sua família vieram morar em que bairro de Piracicaba?

Viemos morar na Rua Marquês de Monte Alegre, 1038, próximo ao Cesac. Isso foi em 1959.

Já tinha sido construída a Igreja São José?

Havia apenas o terreno, o alicerce estava sendo construído, eu ia brincar no monte de areia. Em volta havia poucas casas. A Rua Marques de Monte Alegre era cheia de casas, em frente a igreja, no sentido de quem vai mais para o bairro havia poucas casas. Era bem descampado. Descendo a Rua Ubatuba não havia casa. O Grupo Escolar Dr. João Conceição foi construído depois, era tudo um campinho. Havia muito terreno vazio.

Você continuou seus estudos?

Fui fazer o curso de costura, aprendi um pouco no SESI que funcionava na Sociedade Italiana, na Rua D. Pedro I, fui por pouco tempo. Minha mãe arrumou uma senhora que ensinava costurar, ficava próxima a Praça Takaki, na Rua Maria Nazareth, era a Dona Olívia, ela me ensinava a costurar a noite, minha mãe fazia-me companhia no trajeto. Ali terminei de aprender a costurar, minha mãe também costurava, ela me ajudava. Trabalhei toda a vida como costureira. Bem mais tarde voltei a estudar, Minha primeira máquina foi da marca Elgin, movida a força dos pés, com pedal, não tinha motor. Eu fazia calça para alfaiates, eles cortavam o tecido e davam para as costureiras costurarem. Cheguei a fazer sete calças em único dia. O tecido utilizado na época para calças era a calça de casimira. Depois começou a vir o tecido tergal. Costurava também sob medida, tanto roupas masculinas como femininas. Fiz vários vestidos de noiva. Cheguei a montar uma confecção com a minha irmã, mas ficamos um pouco de tempo só. Ela costura comigo até hoje. Atualmente trabalho mais com consertos, as pessoas compram muita roupa pronta e nem sempre são do agrado delas, sempre tem algum ajuste, alguma coisa para fazer. Faço mais isso hoje, mas ainda faço roupas.

A senhora é casada?

Não sou. A princípio achava que iria ser uma religiosa, cheguei a fazer algumas experiências em algumas congregações, participei de encontros vocacionais, mas eu sentia que em casa eles precisavam demais de mim. Depois eu achava que tinha um trabalho intenso na paróquia, achava que poderia fazer muita coisa sem ter ido a um convento.

Que tipo de trabalho a senhora fazia?

Trabalhei muito nessa paróquia. Trabalhei na catequese, fui catequista, coordenadora, tenho o trabalho realizado na comunidade, a paróquia é dividida em pequenas comunidades. Na comunidade eu fazia de tudo, recolhia o dízimo, fazia os encontros da reza semanal, faço até hoje. Atualmente o dizimo é levado diretamente para a igreja. No começo quando trabalhei na catequese, fiz um trabalho muito dedicado lá no “Risca-Faca”, como era conhecida a atual Vila Cristina.

Você conheceu o Frei Sigrist?

Conheci muito o Frei Sigrist, era outro São Francisco! Uma simplicidade total e uma cultura muito elevada. Um homem muito culto e que morava em uma favela. Não cheguei a trabalhar na favela com o Frei Sigrist mas o conheci porque na época ele dava aula para agentes da pastoral.

Como era a Vila Cistina na época?

O pároco da Igreja São José Monsenhor Luiz Gonzaga Giuliani quando chegou à paróquia, queria que as catequistas fossem de casa em casa buscar as crianças domingo de manhã para trazer à missa. Nós íamos no Risca-Faca de porta em porta, chamar as crianças, tirá-las da cama, para trazê-las a missa. Quantas vezes eu fiz isso? A pé! Depois tinha que levá-las de volta. A catequese, com essas crianças, fazíamos nas casas do bairro. Às vezes até embaixo de uma árvore.

Tinha algum atrativo para motivar essas crianças?

O Monsenhor fazia, quando chegava ao final do ano dava presentinhos na novena do Natal, Fazia muito sorteio dava para as crianças um tipo de um pequeno álbum, a cada encontro da catequese as crianças ganhavam um santinho, como se fosse um álbum de figurinhas, após preencher aquele pequeno álbum de santinhos, a criança ganhava um premio. No dia das Crianças dava doce. Ele cativava as crianças.

Qual é a importância da Igreja São José para o bairro?

Foi muito importante! Para mim principalmente que vim da área rural, foi na igreja que aprendi muita coisa. Devo muito ao monsenhor, através de cursos de formação de catequese, a formação de agente pastoral, ganhei muito com isso. Só depois é que fui fazer o MOBRAL, ai me despertou a perspectiva de estudar. Isso foi em 1969. Prestei exame de admissão, necessário naquela época, assim fui cursar o ginásio, isso em 1970. Nessa época já estava construído o prédio atual do Ginásio Dr. João Conceição, que tinha só o curso primário, no mesmo local o ginásio foi ocupado inicialmente pela E. E. Prof. Alcides Guidetti Zagatto, onde funcionou por alguns anos. Consegui estudar ali meus quatro anos. Conclui o ginásio no Zagatto, que já havia se mudado para o prédio atual. O curso colegial fiz um ano no Colégio Piracicabano, era escola particular. Parei de estudar por razões econômicas. Depois fui fazer supletivo. Fiz dois anos no Dom Bosco. Pensava em fazer uma faculdade, mas por empecilhos financeiros não foi possível.

A senhora acha que doou muito de si para a comunidade?

Doei! Tenho uma alegria imensa em ter doado a minha vida para o trabalho pastoral. Dediquei o melhor da minha vida para a comunidade. Tenho muita alegria em falar isso.
Minha mãe dizia: “- Porque fazer tanto! Não tem mais pessoas que possam também trabalhar? Só você que tem que fazer?”. Eu respondia-lhe: “Não é só eu, é que outras pessoas não fazem!” Eu estava sempre na coordenação, o trabalho é dobrado.
 
Financeiramente a senhora não teve nenhuma compensação, qual foi sua recompensa?

Recebi muita formação, o Monsenhor Luiz Gonzaga promovia cursos para nós. Fiz diversos cursos de formação, entre eles um de formação catequética, em Campinas, na casa de umas irmãs chamadas Lumen Christi em Campinas. Fiz um curso de várias etapas, fiz um curso de Teologia da Diocese foram várias etapas, quando chegou ao final, por motivos domésticos, não pude concluir o curso. Depois voltei a fazer a Teologia aqui no Seminário Seráfico São Fidelis. Na época lecionavam lá Frei Sigrist e Frei Augusto.

Como a senhora vê a realidade das pessoas menos favorecidas?

O pobre do Evangelho não é o pobre material, é o pobre de espírito. È pobre que não tem Deus, não tem conhecimento da fé. Para Deus a matéria não tem valor, ela é importante enquanto você permanece aqui. Ninguém irá levar nada dos seus bens materiais.

A senhora é uma idealista?

Sou, tenho um ideal. Pertenço a um grupo de leigos associados a Congregação dos Missionários Claretianos. Já faz 40 anos que pertenço a esse grupo. Conheci esse grupo de leigos nessa época em que eu queria ser religiosa, participei de encontros vocacionais, tive a oportunidade de conhecer esse grupo de leigos. Com o Concilio Vaticano II ele teve uma abertura muito grande. Foi reformulado. Esse grupo está espalhado, onde os claretianos tem casa eles têm os grupos de leigos, sou privilegiada, aqui em Piracicaba não existem claretianos, eu ia  a São Paulo, na Editora Ave Maria, participar de reuniões. Ficava na Rua Martim Francisco, no bairro Santa Cecília. Eles têm um seminário em Campinas, às vezes eu ia para Campinas.

A senhora morou na Rua Marques de Monte Alegre quantos anos?

Moramos lá por cerca de 19 anos. Alugamos uma casa na Rua Bernardino de Campos, próximo ao Colégio Dom Bosco. Com o dinheiro que o meu pai tinha ele queria comprar uma casa, só que esse dinheiro não dava para comprar uma casa, ele comprou esse terreno aqui. E construiu essa casa. Aqui o nome correto é Jardim São Miguel, estamos nessa casa já há 35 anos. Foi uma das primeiras casas do bairro, não tinha asfalto, era só buraco porque aqui é muita descida, a chuva abria aquelas valetas. No dia de chuva tinha que ir com um calçado até a Avenida Nove de Julho, e trocar o calçado, para ir á uma missa, ou algum lugar. Era muita lama, era horrível sair em dia de chuva, logo depois passou o asfalto.


Avenida Dr. Paulo de Moraes logo após ser construída, do lado direito ainda se vê os pés de café da Chacara Nazareth. As edificações são quase inexistentes.


A Avenida Dr. Paulo de Moraes já estava aberta?

Abriu naquela época, beirando a Avenida Dr. Paulo de Moraes na Chácara Nazareth, ainda existiam as vacas de leite, existia uma cerca onde elas ficavam. Quando construímos a nossa casa fotografamos a Avenida Dr. Paulo de Moraes, não havia nenhuma construção ainda. A nossa casa foi construída pelo meu pai, um irmão dele que trabalhava como pedreiro, residente em Quatá, cidade do Estado de São Paulo. Esse meu tio vinha e ficava a semana toda




O livro que a senhora escreveu  “Uma História de Amor Eterno”é ilustrado com muitas fotografias.

É sim, inclusive recuperei uma que o meu pai deu para a minha mãe quando começaram a namorar. Tem um versinho escrito por ele atrás da fotografia: “ Minha querida Regina Beltrame, queira aceitar esta fotografia, de lembrança do seu aniversário. Com pena pequei na pena, com pena para te escrever, com pena larguei da pena, com pena de não te ver” Ele escreve ainda: “Desse coração que por ti padece.”.

Qual era a profissão do seu pai?

Ele trabalhava no roça. Antes de vir morar na cidade foi contratado a 2 de agosto de 1948  pela prefeitura para trabalhar como conserveiro das estradas, ele deixou a roça, o sítio era pequeno, meus irmãos foram crescendo, mudamos para a cidade. Ele continuava ainda a trabalhar no sítio. Ia pela manhã e voltava à tarde pela jardineira.
Ele foi trabalhar na turma, iam de caminhão para abrir estradas com picareta. Ele permaneceu um ano nesse serviço, quando foi transferido para trabalhar como guarda de abrigo público, nos sanitários municipal. Depois o passaram para chefe, cargo em que se aposentou. Meu pai fazia muito serviços em casa. Fazia vassouras. Fabricava doces, ele tinha a experiência do tempo em que havia montado uma padaria no sítio, logo que se casou, foi onde aprendeu a fazer doce, pão. Em casa ele fazia doce de abóbora, cocadas, doce de mamão, de batata. Colocava os doces nos tabuleiros, para secar, nós íamos vender os doces que ele produzia. Muitas vezes entreguei doces feitos por ele. As crianças ajudavam-no muito, não tinham tempo para ficarem ociosas, sempre tinham um pequeno serviço em casa.

Como educadora, o que a senhora pensa a respeito de criança não poder trabalhar?

Em minha opinião deveria haver uma conciliação, não dispensar de uma vez o trabalho. Meu pai arrumou um serviço para o meu irmão caçula, Antonio Carlos, quando ele tinha sete anos, era para trabalhar em uma farmácia, entregava remédios. Ele ia à escola, depois da escola ia ajudar na farmácia. Meu pai dizia que ele tinha que aprender, a ter responsabilidade. Não sou partidária de um trabalho forçado, de um trabalho pesado para crianças. Meu pai fazendo pequenos serviços em casa nos ensinou a amarrar vassouras, cortar as pontas bem certinha. Ajudavamos a descascar as frutas para fazer os doces. E depois os entregava. O excesso de zelo com as crianças considero como uma desculpa para que a criança não trabalhe. Elas devem aprender a fazer as coisas desde cedo, quando crescer será mais difícil aprender a trabalhar. Se estudarmos a vida de pessoas ilustres, veremos que desde os cinco anos a pessoa já começa a despertar aquilo. Os meninos iam para o seminário com onze a doze anos. E não voltavam a ver os pais.

A senhora lê bastante?

Leio.

A senhora é uma pessoa que está de bem com a vida.

Tenho freqüentado um grupo de terapia, chama-se “Oficina de Emoções”, comecei a ir para motivar outras pessoas a irem. Agora estou indo, sinto que me faz muito bem.

O que é terapia?

É a gente se conhecer. Nós não nos conhecemos. Com essa terapia começamos a entrar em nosso interior. Os sentimentos emocionais têm que ser equilibrados. Temos que aprender a lidar com o emocional. Aos poucos cada um conhece a si mesmo, conseguindo trabalhar a nossa própria história. Vivemos aprendendo. Aprendemos a cada dia.

 

ALEXANDRE SABINO NETO


PROGRAMA PIRACICABA HISTÓRIAS E MEMÓRIAS
JOÃO UMBERTO NASSIF
Jornalista e Radialista
joaonassif@gmail.com
Sábado 05 de outubro de 2013.
Entrevista: Publicada aos sábados no caderno de domingo da Tribuna Piracicabana
As entrevistas também podem ser acessadas através dos seguintes endereços eletrônicos:
http://blognassif.blogspot.com/
http://www.teleresponde.com.br/ ENTREVISTADO: ALEXANDRE SABINO NETO

 





Alexandre Sabino Neto é médico cardiologista clínico e cirurgião. Seu avô Alexandre Sabino (houve um aportuguesamento: a grafia e a pronúncia da palavra foram adaptadas para o português), veio do Líbano por volta de 1897 Sua avó Nagibe ( Nagibe com a letra “e” é feminino de Nagib), veio da Síria, casaram-se em Ribeirão Preto, ambos tinham imigrado para o Brasil e chegaram ao país através de Belém do Pará, de onde seguiram para Santos e em seguida para Ribeirão Preto onde permaneceram até os idos de 1912. Lá tinham um comércio a Loja Verde, ficava na Rua Saldanha Marinho. Nascido a 10 de fevereiro de 1959, Alexandre Sabino Neto é filho de Aniz Sabino e Thereza Pereira Sabino, descendente de italianos e portugueses. Seu pai era comerciante na cidade de Penápolis onde abriram uma loja por volta de 1925 e a mantiveram até a pouco tempo, eram sete irmãos, foram falecendo.

O senhor tem irmãos?

Tenho mais dois irmãos, que também são médicos, Roberto Sabino em Ribeirão Preto e Jorge Sabino no Rio de Janeiro. Somos três operários médicos.

A sua permanência em Penápolis foi até que idade?

Vivi em Penápolis até meus 16 ou 17 anos, ai fui embora para São Paulo. Em Penápolis fiz escola primária, ginásio e colégio, minha primeira professora foi Dona Maria Amélia Uriguela, vizinha da minha casa até hoje. Lá mantenho um consultório. Fiz o ginásio no Colégio Estadual Carlos Sampaio Filho, que foi médico em Penápolis. Pratiquei esportes como basquete, vôlei. Mais tarde joguei nas InterMeds, torneio entre faculdades de medicina. Sempre estudei muito, a partir do primeiro colegial comecei a estudar fervorosamente para entrar na USP – Universidade de São Paulo. Tanto é que saí do colégio e entrei na USP, o terceiro ano colegial fiz junto com o Curso Objetivo em São Paulo, na Avenida Paulista, em 1976. Prestei o vestibular, foi o primeiro da Fuvest, eram questões dissertativas, nunca imaginei que fosse passar, eram 59 candidatos para cada vaga.

O que o motivou a escolher a medicina como profissão?

Desde criança já tinha esse pensamento em tornar-me médico. Meu tio Mario Sabino, que se tornou o nome da rua onde tenho o consultório, era médico. Sempre convivi com ele, seu consultório ficava em frente a minha casa, era na época dos médicos de família, um período muito romântico, muito bonito. Meus pais sempre nos incentivaram a sermos médicos. No primeiro ano colegial tive uma pequena inclinação para a aeronáutica, mas decidi que ia estudar medicina. Após todo o meu preparo, após a faculdade, fiz 10 anos de residência médica.

O senhor fez medicina em qual faculdade?

Na USP em Ribeirão Preto. São seis anos de curso. Fiz mais um ano de cirurgia geral, logo em seguida comecei a desenvolver na área de cirurgia cardíaca. Fiz residência de cirurgia cardíaca, fui trabalhar com o Dr. Adib Jatene em São Paulo, realizei seis anos de residência em cirurgia cardíaca e mais quatro anos em transplante cardíaco, de 1989 até 1995. Nessa época morei no Edifício Copam, no Bloco F, no centro de São Paulo. O apartamento era da minha família. Isso na época em que muitas famílias do interior tinham apartamento em São Paulo. Permaneci morando ali até 1987, acabei me casando com a médica Valéria Braile e fomos morar em frente ao Hospital Emílio Ribas, próximo ao Incor (Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo). Dessa união nasceu a nossa filha Sofia que está se preparando para entrar na faculdade de medicina. O pai da Valéria, Dr. Domingo Braile, também é médico, pioneiro na produção de máquina de circulação extracorpórea, circulação artificial, oxigenadores (pulmão artificial), próteses, ele é da época do Dr. Zerbini, Dr. Jatene, é um médico muito conhecido.

O senhor trabalhou com Dr. Euryclides de Jesus Zerbini?

Trabalhei pouco com ele, logo que cheguei a São Paulo, em 1985. Era uma figura muito expressiva no meio clínico, um desbravador, para explorar a cirurgia cardíaca naquela época foi uma luta, muitos médicos americanos vinham sempre ao Brasil, assim como veio Dr. Christian Barnard, conheci todos eles.

Após dez anos de residência médica com Dr. Adib Jatene, qual foi a sua próxima etapa?

Fiquei como assistente por um período. O 1º transplante cardíaco na América Latina (17º no mundo), foi realizado no Hospital das Clínicas em São Paulo, Brasil, pelo Dr. Euryclides de Jesus Zerbini no dia 26/5/1968. O receptor foi um homem de 32 anos, o João Boiadeiro.

Como é o Dr. Adib Jatene?

Dr. Adib é um trator para trabalhar, um operário infalível, que trabalha incessantemente.  Aprendi muito com ele nesse aspecto: “Meu nome é trabalho”. Ele é extremamente criativo, inteligente, participativo, de pouca conversa. Focado o tempo todo em trabalhar. Nunca vi Dr. Adib com atividade social, nenhuma. Aprendi a escutar o programa de rádio “Hora do Brasil” com ele, estávamos sempre operando a noite e acabava escutando “Hora do Brasil”. Eu escuto “Hora do Brasil” até hoje! Tenho o habito de escutar jornalismo o tempo todo. Gosto muito de leitura. O Dr. Adib transporta para quem o cerca, a capacidade do trabalho, o próprio Dr. Zerbini também falava isso: “-Nada resiste ao trabalho”. A medicina só se aprende trabalhando. Há a necessidade de estudar, mas se não estiver vendo o paciente em sua frente, pondo a mão no paciente, auscultando o paciente com o estetoscópio, examinando com o otoscópio, fazendo a semiologia médica (Exames e avaliações físicas para o correto diagnóstico de patologias e afins), operando, se não fizer isso jamais saberá exercer medicina. Para tratar o paciente é necessário saber fazer o diagnóstico. Encaro os exames como sendo a documentação da semiologia médica, que é o exame físico, clínico. Exames complementados com a semiologia fica fantástico. Irá chegar precisamente em um determinado diagnóstico. Não pode ficar dependente cem por cento dos exames. Existe um termo muito utilizado em medicina: “ A clínica é soberana”. Tenho um paciente de Salto de Itú, que me procurou por ouvir dizer que eu era um médico indicado para seu caso.  Sem exame nenhum disse-lhe: “- O senhor tem a coronária obstruida!”. Disse-lhe isso por causa da sintomatologia bem clássica. Ele ia caminhar de cinco a dez metros tinha dor no peito, qualquer tipo de esforço fisico dava-lhe dor no peito. Na asculta do coração não aparentava nada valvular, a precordalgia, algia do precórdio, tinha discreta cianose labial, (lábios roxos).

O senhor costuma viajar para o exterior em jornadas médicas?

Sempre participei muito de congressos, quando realizados no exterior principalmente nos Estados Unidos. Geralmente acabava ficando alguns dias a mais em alguma clinica ou hospital.

Em que locais o senhor tem consultório atualmente?

Estou em Piracicaba, Salto de Itú, Penápolis e eventualmente em São Paulo. Isso foi ocorrendo de uma forma natural. Quando saí de São Paulo e fui morar em Penápolis novamente, pensava em desenvolver um hospital. Cheguei a construir um hospital. Só que optei em fazer tudo com recursos próprios, e medicina não funciona bem assim, hospital é caro, medicina é cara. Envolve investimentos muito grandes. Medicina é uma atividade muito sedutora, mas tem se tomar muito cuidado com a saúde mental do profissional. As pessoas entregam a vida ao médico, o que ele falar é lei. Chegou uma paciente com dor no peito, digo-lhe que não é coração, é uma dor epigástrica, esofagite, fique sossegada, vou lhe dar tal remédio, vou lhe curar. Estou sendo extremamente imperativo. Só que vou fazer alguns exames para fazer o diagnóstico diferencial, o eletro-cardiograma, para provar que não é, tanto para mim como para você. Essa imperatividade é que eu acho um pouco perigosa. Sempre me coloco no lugar do paciente. Tenho que ser verdadeiro, oferecer segurança.

Há uma corrente de pensamentos que diz que determinada doença ocorre em função do que a pesssoa mentaliza. O senhor concorda com isso?

Eu acredito, lógico, nesse aspecto de corrente psicosomática. O ser humano é um conjunto de massa, um ser orgânico, que por sua vez tem um campo magnético, esse campo magnético você pode chamar de alma, espírito, ogum, oxalá, como quiser chamar. Um copo tem uma massa, tem um campo magnético. Toda massa tem um campo eletro magnético. Tudo aquilo que você mentaliza você tende a puxar. Por exemplo: “-Eu quero aumentar o meu sucesso”.  Eu vou focar o meu sucesso. Voce passa a criar um caminho. Mas o que é o sucesso? Ficar rico? Ter resultados? O que é a prosperidade? O que é ser rico? Por dinheiro embaixo do colchão ou ter uma relação entre custo e benefício positivada? O que é qualidade de vida? O que é satisfação de vida? Existe uma série de conceitos que você tem que ir estabelecendo para que inclusive possa transmitir para as pessoas. Como médico inevitavelmente vejo o lado social da coisa. Tenho que transmitir salubridade para as pessoas. Algo positivo, bom. Para que a pessoa absorva a energia positiva. E sinta segurança. Se você mentalizar um câncer irá ter um câncer.

Partindo desse princípio não deveríamos assistir programas policiais em rádio ou televisão.

 Eu os anulo. Costumamos dizer que o povo gosta de ver sangue. Porque causa emoções. Costumo dizer que existe emoções positivas agradáveis. Temos que partir da premissa de que temos que ser uma pessoa simples, humilde. Para que você possa achar bonita uma orquídea. Não precisa ser fanático por orquídea, ter um orquidário. É o simples ato de olhar para uma orquídea e encher seus olhos, encher a sua alma. Um bom papo com os amigos. Sou muito novo na cidade, estou apenas a um ano e meio aqui em Piracicaba, meus amigos sempre me chamam,: “-Alexandre, vamos sair, vamos conversar!”. Eles gostam desse meu lado entusiasmado da vida.

O senhor é uma pessoa empolgada pela vida?

Sou, é bom desfrutar os prazeres com as pessoas, moro aqui no Hotel Beira Rio, os funcionários gostam de mim. Brinco, converso com todo o mundo. Desde os cargos mais simples até a diretoria.

O senhor é religioso?

Sou católico, praticante, muito rezador. Acho fantástico o exemplo que o Papa Francisco está dando. Acredito que nós todos temos que ter esse nosso lado espiritualista, para que exista os principio de começo,meio e fim. Acho importante que haja religiosidade independente de qual for a religião.

Essa opção do senhor em morar em um hotel é pela praticidade?

A minha mãe mora comigo. Aonde vou sempre a minha mãe está comigo. A família toda faleceu com o passar do tempo, sobrou praticamente eu e ela, que é uma pessoa empolgada pela vida. Temos que dinamizar a vida dela também. Não posso simplesmete colocá-la em um apartamento e dizer que tem uma pessoa que irá viver com a senhora, tenho as minhas atividades profissionais e de vez em quando irei fazer uma visita à senhora. Não concebo isso. Tenho que criar um certo dinamismo. Eu poderia estar alugando um apartamento, gastaria o mesmo valor ou talvez menos, mas aqui dentro deste hotel há um dinamismo todo. Essa dinâmica magnética é que acho interessante. Existe hotéis por ai que possam até ser melhores, mas não tem vida. Não tem com quem conversar. Nada acontece. Aqui há um fluxo de pessoas de todos os tipos, do mundo todo, americanos, europeus, latinos, sempre tem uma festa, um casamento. Sempre acreditei muito nesse encanto. Do seu viver. Do seu dia a dia.

O senhor conhece o Lar dos Velhinhos em Piracicaba?

Conheço, achei fantástico, inclusive tem uma senhora de Penápolis que mora lá. Dona Abadia Nobre. Ela foi fazer uma consulta, na hora em que a chamei pelo nome, chorei.

O senhor chora?

Choro, e não precisa muito para me fazer chorar. A vida é muito intensa, lido muito tempo com grandes emoções das pessoas. Quando vi Dona Abadia, passou pela minha frente o filme da vida. Toda vez que vejo o filme Cinema Paradiso eu choro. Lembro muito do meu pai, que mexia muito com fotos e cinema. Só que amador. Nós temos até hoje uma Payard Bolex, uma máquina fotográfica da época da Segunda Guerra uma Kodak Medalist, ele ganhou premio na Espanha, Holanda, em fotografia em branco e preto. Além de músico. A família toda gostava de música. Eu sempre toquei piano, acordeom. Na época da Segunda Guerra Mundial eles tinham a orquestra Jazz Sabino.

O senhor é motociclista?

Sou, tenho uma motocicleta Yamaha V-max1200. Gosto muito de avião. Na década de 90 fui médico do Grande Prêmio Fórmula-1 pela Unicor, fiquei na curva 3, nunca me esqueço, permaneci três dias lá: sexta, sábado e domingo. Conheci Airton Senna, Emerson Fittipaldi, Nelson Piquet. Nessa época eu estava terminando a residência no Incor. Foi ai que acabei criando a minha empresa, Ascor- UTI no Ar. Sou piloto de avião também. Com a minha empresa acabei dando assistência médica em outras corridas em Interlagos, como as de moto velocidade, Fórmula Uno, Fórmula Corsa, Mil Milhas, nos transportes aero médicos que eu fiz, com helicóptero, avião. O avião permanecia locado em São Paulo e eu ia buscar doentes em todo e qualquer canto do mundo. Levei doente para Roma. Nesse caso eu levei em avião de carreira, pela Alitália, isolei nove poltronas, coloquei os tubos de oxigênio, coloquei um tipo de uma cortina, o americano chama isso de iglu. Era um menino italiano, de 20 anos, tinha tido uma overdose de cocaína, fez uma parada cardíaca na frente do Hospital Israelita Albert Einstein, reanimaram, ele saiu tetraplégico, fez uma isquemia cervical, dependente de um respirador artificial, para ser transportado para a Itália tinha que ser transportado com um respirador que eu levei. Foram onze horas de viagem. Na Itália ele ia implantar o marca-passo diafragmático que estava iniciando na época. É o marca-passo que faz a pessoa respirar, dá o movimento do diafragma, de ida e volta. 

Quais as conseqüências do tabaco para o organismo humano?

O tabaco indubitavelmente é deletério (Nocivo a saúde; venenoso), principalmente no aspecto pulmonar. O cigarro tem uma série de substâncias que causam rapidamente uma dependência, além de ser extremamente nocivo, criando o que chamamos de enfisematoso, causa DPOC (Doenças pulmonar obstrutivas crônicas). Vai atingir o coração que é a bomba do corpo, são duas bombas, uma de alta pressão e outra de baixa pressão. Uma vez mexendo com o aspecto cardiovascular, pressão que sobe, pressão que desce, o coração irá sentir, é a mesma coisa que andar com um carro com dois ou três dentes do freio de mão puxado. O carro está fazendo força nas bronzinas, nas bielas. nos anéis, freios, disco, pastilhas. É a mesma coisa que ocorre com o coração. O carro DKW Vemaguete tinha uma alavanca do lado esquerdo que dava a tal de roda livre. Sempre costumo dizer que para tratar bem, ter um bom prognóstico de doenças cardiovasculares tem que dar roda livre para o coração, ele tem que trabalhar livre. Sem oposição, sem encontrar resistência. Essas doenças são muito coligadas com esse aspecto mecânico, ou hidrodinâmico, que é o comprometimento cardiovascular de uma maneira sistematizada.

O senhor é piloto de qualquer tipo de avião?

Sou piloto de avião motor, a pistão como chamamos. Helicóptero eu gosto com reservas, oferece mais riscos. Nunca me esqueço que fui buscar uma criança em João Pessoa com um avião monomotor Bonanza, em vôo noturno, com chuva. Eu estava com um piloto, como médico sempre tenho um piloto junto. Trouxemos essa criança, um recém nascido com problemas de coração, para Vitória, Espírito Santo. Na Copa do Mundo na Califórnia fui buscar uma pessoa que sofreu um AVC (derrame). Vim em avião de carreira também. Para Nova Iorque fui várias vezes, levei pessoas notáveis, uma criancinha. A família do Chitãozinho mesmo eu fui buscar uma vez que tiveram um acidente em Assis. Na época fomos buscar com três aviões, eles estavam em um veículo Lumina que ficou prensado entre duas carretas. Isso foi em 1992 se não me engano. Trouxemo-los para a Beneficência Portuguesa, em São Paulo.

O Hospital Beneficência Portuguesa é uma referência cardiológica?

É referência mundial. É o hospital que mais opera coração no mundo todo. Chegou a operar 45 cirurgias cardíacas por dia. Sempre acumulou muitas equipes médicas, até 15 equipes médicas. O Dr. Antônio Ermírio de Moraes sempre foi um apaixonado por medicina. (O empresário sempre dedicou parte de seu tempo à Sociedade Beneficência Portuguesa de São Paulo, uma hora e meia todo dia). Ele investiu muito no hospital, tem um prédio da Beneficência Portuguesa que é um luxo, sendo que a prevalência da Beneficencia Portuguesa sempre foi previdenciária. Cerca de noventa por cento. Até hoje funciona assim. Eles trocaram sete máquinas de hemodinâmica a pouco tempo, cada uma custando cerca de um milhão de dólares. Tudo lá é de última geração. A maneira que eles trabalham a cada dia que passa é uma sistematização muito segura para o paciente.

O que o senhor pensa sobre a vinda dos médicos cubanos?

Não sou totalmente contra. Eles tem o preparo deles. Trabalham mais no lado profilático, que é o previdenciario. São médicos de profilaxia de doenças básicas. Está tendo um problema economico, o médico brasileiro tornou-se um operário, achatou a classe médica, e os médicos nem sempre estão se sujeitando a ir para lugares onde esse pessoal está indo com muita dificuldade. Até mesmo eles já estão desistindo. É um fato político, economico e da saúde.  Diante de uma situação dessas algum resultado positivo tem que haver. O governo achava que iria ter uma adesão magnífica deles, o que não está ocorrendo, isso porque as condições oferecidas não são satisfatórias. Vai ter que ser tomada uma atitude para melhorar as condições de atendimento.

O senhor acha que o governo precisa investir mais em saúde?

Não tenho a menor dúvida. Tem que existir um vigilancia maior. Estamos em um grande centro, como é Piracicaba por exemplo. Piracicaba hoje é uma bolha economica. É a bola da vez. Esse eixo, Piracicaba, Americana, Campinas, Sorocaba, é o “Vale do Silício” que se fala. (Na Califórnia, Estados Unidos, é uma região na qual está situado um conjunto de empresas, acabou virando sinônimo de centro de tecnologia). Trabalho aqui nessa área previdenciária, vejo que existem dificuldades que fogem no meio dos dedos dos governantes.

Por qual motivo essas dificuldades fogem ao controle do poder constituido?

Ai vem a parte complexa da coisa. Mesmo em cidades pequenas, como é a minha cidade de Penápolis, também fogem nos meios dos dedos dos governantes, as vezes é a parte economica, as vezes não consegue criar o clima dinâmico de regularidade. O bom na medicina é a regularidade médica. Por exemplo, escala de médicos de plantão, da noite para o dia fura tudo. Um ficou doente, outro quebrou o carro, outro a mãe ficou doente, ou o filho caiu da cama. Essa dinamica do dia a dia que gera stress nos profissionais da área médica, não ocorre só com o médico, mas também com a enfermeira, a auxiliar de enfermagem, o motorista da ambulância, o coordenador da escala de plantão, o próprio secretário da saúde. Todo esse conjunto na área médica tem que ter uma regularidade.

 

RUBENS GERDES


PROGRAMA PIRACICABA HISTÓRIAS E MEMÓRIAS
JOÃO UMBERTO NASSIF
Jornalista e Radialista
joaonassif@gmail.com
Sábado 28 de setembro de 2013
Entrevista: Publicada aos sábados no caderno de domingo da Tribuna Piracicabana
As entrevistas também podem ser acessadas através dos seguintes endereços eletrônicos:
http://www.teleresponde.com.br/
ENTREVISTADO: RUBENS GERDES

 


 

Rubens Gerdes é descendente de alemães e italianos. Nascido a 23 de junho de 1934, às seis horas da manhã, em Piracicaba na Rua Moraes Barros esquina com a Rua Bom Jesus, filho de Alberto Gerdes e de Judith Previtalli Gerdes. Seu pai teve quatro filhos no primeiro casamento, viúvo, contraiu segundas núpcias onde teve mais quatro filhos sendo Rubens o mais novo.

O pai do senhor exercia qual atividade?

Ele era sapateiro, proprietário da Sapataria Bom Gosto. O Teatro Santo Estevão exibia uma propaganda da sapataria. Lá eram fabricados sapatos e também se faziam consertos. Tanto de sapato feminino como masculinos.  Meu pai foi um homem muito conhecido, era sério, honesto, todo o mundo conhecia o Gerds.

O senhor estudou em que escola?

Fiz o curso primário no Sud Mennucci. Naquele tempo com oito, nove anos já estava trabalhando. A minha primeira profissão foi a de sapateiro. Meu pai cortava o sapato, muitas vezes eu cortava, pespontava, costurava, depois montava o sapato normal. Naquela época vendia-se muito sapatão, usava prego-torno, que é o prego de madeira. A sola era pregada com prego de madeira. Depois saiu o sapato Packard de sola grossa. Mudamos para a Rua Bernardino de Campos, entre a Rua XV de Novembro e a Rua Moraes Barros, meu pai deixou de ter a sapataria e comprou um sítio do Dr. João, vizinho a Fazenda da Dona Antonia, no atual Bairro do Matão. Lá tinha suínos, uma vaquinha. Eu tinha uns 10 a 12 anos nessa época, ajudava-o muito na alimentação dos porcos. Íamos e voltávamos todos os dias, a condução utilizada era carrinho de tração animal. morávamos na Rua Bernardino de Campos. De lá mudamos para uma chácara de nossa propriedade onde hoje é a Rua Bahia, era uma área de uns três alqueires. Havia os mais variados tipos de frutas. Nós plantamos pés de coco vindos da Bahia, agrônomos da Escola de Agronomia iam visitar nossa chácara. Com 14 anos entrei para trabalhar na Mausa na Rua Santa Cruz, que antigamente chamava-se barracão de laranjas, lá antes de entrar a Mausa havia laranjas, a Estrada de Ferro Sorocabana passava rente ao barracão. Permaneci na Mausa por quase sete anos. Naquele tempo o bom empregado era aquele que fazia de tudo. Foi no tempo de João Bottene, Dr. Carvalho, Arthemio Bottene, Fleury, Bottini. João Bottene era um homem que só com o olhar impunha respeito. Muito inteligente, fabricou as primeiras locomotivas do Monte Alegre, os vagõezinhos vinham de Santa Bárbara D`Oeste só com cana-de-açúcar. Não havia caminhão como há hoje.

Que horas o senhor ia trabalhar na Mausa?

Naquele tempo não havia horário, não havia energia a toda hora. Por exemplo, às sete horas da manhã estava lá, quando era meio dia, uma hora da tarde, vinha embora. Às nove horas, onze horas da noite tinha que voltar para trabalhar, não havia energia para trabalhar, a cidade não tinha energia. Depois a Mausa adquiriu um gerador de energia. Piracicaba toda tinha esse problema de falta de energia, principalmente o setor metalúrgico que usava a energia mais pesada. Ali eram fabricadas turbinas, filtros, tudo para usina de açúcar. Havia a fundição de peças, caldeiraria, ferraria, ajustadores, torneiros. Trabalhei mais como ajustador, mas quando ia fundir, participava todo o pessoal. Eram poucos funcionários.

O senhor saiu da Mausa e foi fazer o que?

Meu pai trabalhava no fundo de casa como sapateiro, fui ajudá-lo. Depois comprei um caminhão Ford, ano 1946, foi meu primeiro caminhão. Meu cunhado, José Menen, o Lolo, era construtor, eu transportava material para ele. A carroceria era de madeira, na hora de carregar e descarregar eu usava a pá, muitas vezes sozinho. Por 15 anos trabalhei com caminhão, em 1959 comprei um caminhão Internacional novo, na Duvema, situada na Rua Benjamin Constant. Levava ferro de construção produzido pela Dedini para Brasília, vi Juscelino Kubitschek de Oliveira andando em lombo de burro, lá em Brasília. Eu dormia como um canivete, encolhido, não dava para esticar as pernas na cabine do caminhão.

Como eram feitas as refeições no percurso?

Existiam as vendas na beira da estrada, comia ali, outras vezes tinha algum lugar que faziam comida para nós que viajávamos. Com o tempo foram formadas cidades ao longo do percurso. Ai parava em algum posto existente.

O senhor viajava quantas horas para chegar até Brasília?

Muitas vezes uns dois dias, não havia estradas como existe hoje. Era tudo estrada de terra. Não tinha postos de gasolina a vontade. O caminhão era movido à gasolina. No Internacional levava de dez a doze toneladas. Viajava sem ajudante, era eu, Deus e o caminhão. Viajava para o litoral, fazendo frete, transportei o primeiro aço utilizado na construção da Cidade Ocian. Na volta à Piracicaba trazia insumos para fertilizantes utilizados pela Cooperativa dos Plantadores de Cana de Piracicaba. Carregava na Solorico. Às vezes descia para o litoral transportando açúcar. Levei muito açúcar para Belo Horizonte.

Quantos sacos de açúcar eram transportados em cada viagem?

Conforme o pedido do cliente, variava de 150 a 200 sacos de 60 quilos cada um, totalizando 12.000 quilos. A usina tinha empregados para carregar o caminhão, para descarregar, muitas vezes eu não tinha ajudante, descarregava sozinho. Eu era um homem muito forte, carregava até dois sacos de açúcar de uma só vez. Fui muitas vezes para São Paulo quando a estrada era de terra, de Jundiaí até São Paulo começaram a fazer uns lajões, isso no tempo do Governador Adhemar de Barros. A Via Anchieta era fácil para descer, mas para subir era brava, tinha uma única pista. Eu ia para o Paraná, passava por Itapetininga, Itapeva, Itararé, Sengés, Ponta Grossa. Fui para o Mato Grosso, para Porto Velho, no Acre. Pegava carga de empresas de São Paulo e levava. Nessa época eu já tinha caminhão Mercedes-Benz. A primeira carreta que eu tive vendi para o Lubiani, Na época a empresa mais antiga de transportes de cargas era o Expresso Piracicabano. Cheguei a ter uma meia dúzia de caminhões, com motoristas trabalhando para mim.

Para dirigir caminhão tem que ter conhecimentos sobre o seu funcionamento, um dos pontos é o freio a ar, que se usado em excesso fica sem freio?

A sapata do freio tem que estar sempre sendo regulada, ficar encostada, para não usar muito o ar, ao pisar no freio ele já parar. Hoje se acabar o ar o caminhão trava.

Hoje é mais fácil dirigir um caminhão do que um automóvel?

Eu prefiro o caminhão, ele oferece mais segurança. Se precisar dirijo caminhão, mas atualmente só ando com o meu automóvel.

Porque a carreta faz o famoso “L”, que é quando a carroceria gira em torno do cavalo (onde está o motor)?

Isso depende do motorista. Não pode pisar no freio com toda a força do pé. Precisa travar no manequim, que freia a carreta lá traz, ai segura o cavalo pisando no freio. Se frear só a frente a carreta faz o “L”. Tem que ter habilidade para dirigir uma carreta. 

Como era viajar para o Acre nessa época?

Havia cargas perecíveis que tinham prioridade, não ficavam nas filas de balsas para transpor diversos rios, os demais caminhões obedecia a fila. Para ir e voltar levava até 60 dias de viagem. Quando o tempo estava bom demorava menos, uns trinta dias. Naquela época não existia seguro para veículos. Tive dois caminhões roubados, decidi parar de trabalhar no setor de transportes. Montei uma laminação de ferro, onde foi o chamado “Vidrão”, que era uma fábrica de garrafas que não progrediu. Eu fazia ferro de construção, adquiria refugo de ferro para relaminar. Após algum tempo encerrei as atividades dessa laminação.

Nessa época o senhor já era casado?

Já tinha me casado com Aparecida Pagotto Gerdes, ela faleceu há treze anos. Nosso casamento foi realizado na Igreja São Judas Tadeu, na época a Avenida Independência era uma pista só da Santa Casa até a Igreja São Judas Tadeu, sem asfalto. Tivemos quatro filhos: Reinaldo, Rose, Rogéria e Ricardo.

O senhor e seus filhos passaram a trabalhar na área de construção civil, e nessa atividade realizaram remoções de monumentos de um local para outro da cidade?

Eu estava ainda trabalhando, quando pegamos um serviço, que era relativo ao monumento aos combatentes da Revolução Constitucionalista de 1932. Esse monumento estava na Praça José Bonifácio, tinha sido removido para a praça em frente ao Cemitério da Saudade. Nosso trabalho era levar esse monumento na Praça José Bonifácio, de onde tinha sido tirado. Foi um trabalho muito difícil. São peças pesadas. Dr. João Correia vinha lá e recomendava que tomássemos cuidado para não danificar o monumento nesse trabalho de remoção. A estrutura para montar uma parte é de pedra, depois vem as bases em granito, são peças de 300, 500 quilos. A escultura é em bronze. Outro monumento que removemos foi o dedicado a Luiz de Queiroz, estava em frente a ESALQ, fora do campus, e foi levada para a Praça José Bonifácio. Fizemos a base, é um monumento alto, e colocamos no topo a escultura da figura de Luiz de Queiroz. É muito pesado, tivemos que usar guindaste para levantá-la. 

O senhor foi um dos responsáveis em colocar o busto do seresteiro Cobrinha em frente ao cemitério?

Sempre gostei muito de seresta, acompanhava os seresteiros até pouco tempo. Todo fim de semana estava com meus amigos seresteiros, cantava com eles. Pensei em ajeitar o terreno onde tinha o monumento aos combatentes de 1932 e colocar ali um monumento ao Cobrinha (Victorio Ângelo Cobra), vi muitas vezes ele cantar, ia com ele onde se apresentava, inclusive fui com ele à Sorocaba. Era uma pessoa muito boa, foi um dos homens que representou Piracicaba até fora do Estado de São Paulo. Sempre cantou muito bem. Lutei muito tempo, consegui com os amigos que ajudaram, e assim foi feito o monumento ao Cobrinha que permanece lá. A fundição do busto foi feita por um amigo, Euclides Libardi. O projeto é de Marco Antonio Cavallari. Colocamos o busto, fizemos uma festa de inauguração do mesmo, a parte inferior é uma estrutura em alvenaria, e o busto é em bronze.

Do alto da sua experiência como o senhor vê os acontecimentos atuais?

Gostaria que os investimentos feitos em futebol fossem canalizados para a saúde. Enquanto a saúde está em situação precária o futebol recebe grandes recursos.

A responsabilidade maior dessa inversão de valores é do povo ou do governo?

A maior parte é responsabilidade do povo. Outra parte é do governo, sua função é administrar os recursos. Em minha opinião a pessoa já começa a assumir uma responsabilidade quando entra em uma escola. Lá ela irá aprender a ler e a escrever. Com 14 anos se não quiser seguir os estudos vá aprender um ofício. Educação quem dá não é a escola, é o pai, a mãe, a família. No meu tempo as crianças brincavam com bola de meia, era o tempo do rec-rec, (uma espátula de ferro que era utilizada para tirar o mato que crescia nos vãos entre paralelepípedos das vias públicas).

O senhor conheceu Brasília desde quando foi construída?

Conheço Brasilia desde quando estava sendo construída, vi Juscelino Kubitschek e Oscar Niemeyer andando em lombo de burro, inspecionando as obras. Juscelino era um homem simples.

O senhor andou muito dentro da cidade de São Paulo?

Andei com meu caminhão, hoje mudou muito. Ia para a Rua Paes de Barros, Mooca, Mercadão, Rua Bresser, Rua Oriente, Rua Maria Marcolina, não havia esse transito intenso. Nós tínhamos em Piracicaba a Guarda Municipal, andavam a pé. Quando prendia alguém iam a pé para a cadeia. Naquele tempo alguém da família tinha que levar a comida para o preso, senão ninguém dava.

O senhor lembra-se dos cavalarianos?

Antes dos cavalarianos existia a Mula Preta. Era um furgão grande, negro, quando prendia alguém era colocado nesse furgão. A pessoa que andasse pelas ruas sem nenhuma ocupação ou emprego era detido por vadiagem. No Bairro Monte Alegre havia bailes, para ir ao baile era a jardineira que levava, seu proprietário chamava-se Pavão. Na volta as mulheres vinham caminhando, ninguém mexia com elas. Todo o mundo as respeitava. Prova disso é que a Fábrica Boyes tinha três turnos, uma turma entrava às cinco horas da manhã, saia às duas horas da tarde, outra entrava às duas horas da tarde e saia às dez horas da noite, outra entrava às dez horas da noite e saia às cinco horas da manhã.  Todo mundo ia a pé, da Paulista, do Piracicamirim, ninguém mexia, hoje dentro do ônibus estão matando. Naquele tempo quadrava-se o jardim, os negros faziam o trajeto quadrando a Rua Moraes Barros, Rua Governador Pedro de Toledo, voltando à Praça José Bonifácio, o banheiro utilizado pelo pessoal que quadrava o jardim era o da Brasserie, do Lider Bar, para passarmos e irmos ao banheiro falávamos: “ -Dá licença?”. Eles paravam, a pessoa passava pela fila deles. Existia um grande respeito.

O senhor freqüentava o cinema?

Eu ia lá no “puleiro” do Cinema São José. Assistia Tom Mix, Buck Jones, Tarzan. A freqüência no “puleiro” era predominantemente masculina. Guardo até hoje dois cofrinhos com moedas, que eu guardava para dar para minhas filhas, há pouco tempo abri os cofrinhos e vi as moedas: centavos, tostões, duzentos réis, trezentos réis, quinhentos réis, ninguém sabe o que é isso. Com um tostão, com duzentos réis, ia ao cinema, comprava balas do Passarella, assim nos divertíamos. Hoje tudo é mais fácil, basta apertar um botão. Meus filhos têm obra no Maranhão, de lá eles estão me vendo em casa através de câmeras.

O senhor nunca imaginou que um dia iria ver isso?

Nunca. Só acho que o país precisa melhorar sua produtividade. A educação é muito importante, tem que ficar claro que ela é dada em casa, professor não educa, ensina, dá conhecimentos. O pai que tem dois filhos verá que cada um deles pensa de forma própria. Como uma única pessoa pode tomar conta de uma centena de crianças? Considero um erro o país ter creches, acho errada a mulher não cuidar dos seus próprios filhos. Tive um funcionário, excelente, que um dia me comunicou que no dia seguinte iria deixar de ir ao trabalho para cuidar dos papéis do filho que nascera. Dei-lhe os parabéns, perguntei-lhe se era o seu primeiro filho. Ele disse-me que era o seu primeiro filho, mas que a sua mulher já tinha oito filhos. Perguntei-lhe como iria tratar dos oito filhos mais o que nascera ele disse-me: “-Levo na creche, a creche que trate!”. Pode se afirmar que isso é educação, exemplo de vida? Por isso nunca vai acertar esse país.

O senhor tem alguma religião?

Sou católico, apostólico, romano. Não desfaço das demais religiões. Vou à missa na Igreja Santa Catarina, quando posso, assisto muitas missas pela televisão, faço diariamente minhas orações ao acordar e ao me deitar. Agradeço a Deus, e peço pelos meus entes querido, para aqueles que necessitam de saúde.

O senhor acha necessário o homem ter uma religião?

A pessoa tem que acreditar em Deus. O resto da vida é uma ilusão. A primeira coisa que a pessoa deve pedir a Deus é a saúde, é a coisa mais importante que temos. O resto são ilusões que vamos vivendo.

O ser humano é um pouco infantil?

Exatamente. Hoje é, antigamente não. A tecnologia trouxe benefícios, mas na maior parte das vezes é mal utilizada, isso acontece com o computador, com a televisão.

O senhor gostava de pescar?

Gostava muito. No Bairro Ondinhas, meu sogro, o Pagotto, tinha uma propriedade, era o maior pesqueiro que existia no Rio Piracicaba. Hoje o pessoal vai pescar leva lingüiça, algum tipo de carne, cerveja. Nós íamos ao rancho na beira do rio e pegávamos a “mistura”, (acompanhamento da refeição), no rio. Levava café, um garrafão de pinga, limão, banha, era aquele quadradão de banha, panelão de ferro. Fritava lambarizinho no fogão a lenha, fazia uma polenta, pescava de barco. Uma vez veio um parente meu de Sorocaba, fomos pescar. Armei o tarrafão, passei a corda de espinhel, é uma corda com bastantes anzóis pequenos, pegava principalmente mandi, passei a rede de lance, que é de barranco a barranco, enchi o barco de peixe: dourado, piracanjuba, corumbatá. Isso tudo no Rio Piracicaba, esse rio é milagroso. Eu tinha uma caminhonete ano 1951, lotei de peixes, coloquei umas folhas de bananeira em cima, passei uma cordinha e fui para Sorocaba, dei todos os peixes para os meus parentes. Tudo isso peguei aqui. No Mato Grosso uma vez peguei um jaú, de oitenta e poucos quilos, só a cabeça pesava trinta quilos. De ilusão se vive o homem.



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