sábado, agosto 22, 2009

NORIVAL TEDESCO
PROGRAMA PIRACICABA HISTÓRIAS E MEMÓRIAS

JOÃO UMBERTO NASSIF Jornalista e Radialista joaonassif@gmail.com
Sábado 22 de agosto de 2009
Entrevista: Publicada aos sábados no caderno de domingo da Tribuna Piracicabana

As entrevistas também podem ser acessadas através dos seguintes endereços eletrônicos:
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ENTREVISTADO: NORIVAL TEDESCO

Norival Tedesco é uma pessoa muito conhecida em Piracicaba, tanto pela sua atividade profissional como pela sua atuação social. Acometido por uma doença crônica e progressiva, conseguiu com sucesso o domínio da mesma. Há muitos anos ele realiza o trabalho de auxílio na recuperação de pessoas que são dependentes químicos (álcool, drogas), uma atividade voluntária e sem nenhuma remuneração. É idealizador e o fundador da irmandade dos Narcóticos Anônimos em Piracicaba, que na época foi criado de forma intuitiva para atender a necessidade de tratamento de uma pessoa que Norival conhecia. Carismático, com uma franqueza própria daqueles que dizem aquilo que o coração manda, aos poucos ele envolve desde um ouvinte até uma enorme platéia, situações corriqueiras em sua vida. Defensor ferrenho do livre arbítrio, nunca critica qualquer ser humano. Sob o seu conceito, as pessoas é que devem escolher o que acham ser o melhor da vida. Norival é respeitado por todos que o conhecem. Por muitos até admirado. Nascido em Torrinha, no dia 15 de dezembro de 1931, é um dos doze filhos de João Tedesco e Maria Sapia Tedesco. Norival é casado com Da. Maria Lina dos Santos Tedesco.
Qual era a atividade do seu pai em Torrinha?
Ele tinha uma linha de ônibus, o percurso era feito com a então chamada jardineira. A princípio ele fazia o percurso Piracicaba a Torrinha. Resolveu vender parte da linha, que fazia o trecho de São Pedro até Piracicaba, ficando com a parte da linha que ia de São Pedro até Torrinha.
Antes dessa linha de ônibus de Piracicaba á Torrinha ele teve uma outra linha?
Meu pai e meu tio Miguel Tedesco foram sócios em um ônibus que ia de Piracicaba até Rio Claro. Havia uma outra pessoa que fazia a mesma linha. Houve um acordo entre eles para estabelecer um preço único da passagem, 15 unidades da moeda da época. Logo depois, o concorrente do meu pai abaixou a passagem para 13 unidades, pois um passageiro disse que pagou 14 unidades (afirmação incorreta), ao fazer o trajeto com o ônibus do meu pai. E assim ambos os ônibus foram abaixando as tarifas, a ponto de levarem o passageiro de graça e ainda pagavam o almoço para o então feliz passageiro! Chegaram ao extremo: a viagem era de graça e incluía gratuitamente um almoço e uma cerveja! Quando acabou o dinheiro, meu pai e meu tio pararam de fazer o transporte de passageiros. Só então ficaram sabendo que o concorrente tinha recursos para trabalhar mais uma semana e deveria parar. Esse concorrente tornou-se dono do Expresso de Prata. Muito tempo depois, meu pai estava em condições financeiras desfavoráveis, o dono dessa empresa ofereceu um ônibus de presente para o meu pai, que talvez por brio, não aceitou.
Qual era a marca do ônibus utilizado pelo seu pai nessa época?
Era um Ford, acredito que levava uns 15 passageiros, já era o modelo fechado. Ele teve um ônibus aberto, que fazia o percurso de São Pedro á Brotas, a estrada era muito ruim. Nós a chamávamos de “Gateada”, o motivo desse nome também não sei.
A viagem de São Pedro á Torrinha era feita diariamente?
Era feita uma viagem de ida e volta todos os dias, a estrada era de terra, na serra era bem apedregulhada.
Quando a sua família mudou-se para Piracicaba?
Acredito ser em 1937, eu tinha seis anos na época, viemos morar na Rua Regente Feijó, em frente ao campo do XV de Novembro. Sou quinzista daquele tempo, sempre arrumava um jeitinho de entrar, por ser menor, estando acompanhado eu não pagava e meu pai sempre assistia aos jogos.
Aconteceu uma fatalidade com seu pai em um desses jogos?
Meu pai morreu no campo do XV de Novembro. O jogo era XV de Piracicaba que fez 2 gols e Guarani que marcou 1 gol, o XV ganhou o jogo. Naquele ano, 1978, o Guarani foi campeão brasileiro, no domingo seguinte, dia 3 de setembro de 1978 veio jogar contra o XV em Piracicaba, no término do jogo, meu pai levantou e tornou a sentar-se, morreu naquele instante. Havia um médico presente, que fez tudo que pode, mas não tinha mais como devolver-lhe a vida. A primeira bandeira do XV, meu pai ajudou a comprar e seu caixão foi coberto com ela. Aquele dia eu não estava no campo.
Como quinzista, você guarda muitas lembranças daquela época?
Tenho uma grande saudade daqueles tempos. Lembro-me do goleiro do XV, Eduardo Farah, ficou na memória. Um time muito bom tinha em seu quadro o trio final: Índio, Raul e Renato.
O senhor estudou em que escola?
Estudei no Grupo Escolar Moraes Barros, havia um respeito muito grande pelo professor. O mais importante, e que hoje acredito existirem bem poucos, eram os professores que nos ensinavam a aprender. Ensinaram que a leitura iria ser importante na minha vida. Sempre gostei de ler. O primeiro livro que li foi Idéias de Jeca Tatu de Monteiro Lobato. Fiquei tão entusiasmado com aquelas histórias, nesse tempo a biblioteca pública ficava na Rua Governador esquina com Rua Prudente de Moraes, onde hoje está o prédio do Cristóvão Colombo, ela passou a emprestar livros para crianças, eu ficava por dois dias com o livro emprestado.
Com quantos anos você começou a trabalhar em uma livraria?
Faltavam dois dias para que eu completasse onze anos. A Livraria Brasil ficava aonde mais tarde veio a ser o Banco do Estado de São Paulo, hoje Santander, quase em frente ao Jornal de Piracicaba. Um fato curioso aconteceu nesse prédio da livraria, eu já não trabalhava mais lá quando isso aconteceu. Durante a construção do prédio do Banco do Estado, o prédio da livraria, que ficava ao lado, caiu. Deu tempo de quem estava dentro da livraria sair correndo. A livraria passou para a Rua Governador. O Hotel Central ficava ao lado da Catedral de Piracicaba. Pegado ao Hotel Central existia o Bar Comercial, era um sobrado muito antigo, na parte superior foi sede da UDN. Tinha baile de carnaval. Naquela época dançávamos ali e no Teatro Santo Estevão, onde no tempo de carnaval havia a Boca do Diabo.
Muitos já falaram a respeito desse baile da Boca do Diabo, mas ninguém contou os detalhes.
As músicas eram executadas por uma orquestra. Quando ia começar o baile de carnaval, o responsável pelo baile dirigia-se ao público dizendo: “-Por favor, se tiver presente aqui alguma moça de família, pedimos que se retire, porque nós não nos responsabilizamos pelo que possa ocorrer.” A coisa era brava! Eu era “freguesão”! . Na verdade, as moças que permaneciam eram moças mais modernas para a época. Se o rapaz começasse com muita graça, tinha alguém que vinha adverti-lo. Era um baile avançado para aqueles tempos. Hoje seria encarado de forma diferente.
Onde hoje existe a Galeria Gianetti, era o que antes?
Era o quintal do Hotel Central. Ainda ao lado da Catedral, do lado esquerdo para quem a vê de frente, hoje existe um barzinho que vende pastel, foi a primeira sede da Viação Piracicabana, começou a trabalhar com os carros Ford 1929. A corrida de um carro de praça, hoje chamado táxi, era coisa de 5 cruzeiros, dentro da cidade. Atílio Gianetti colocou o Ford 1929 cobrando 3 cruzeiros. Foi assim que apareceram o Fordinho número 1, depois o número 2, o número 3. Em seguida ele colocou um carro melhor para levar as noivas ao casamento.
Existia uma fábrica de bebidas chamada Andrade, você a conheceu?
Quanto tempo que eu perdia nessa fábrica! Eu ia entregar encomendas da livraria, quando passava pelo Andrade, situada em frente ao Grupo Moraes Barros, eu ficava contando ás garrafas que estouravam, o sistema de pressão era muito forte, ao ser enchidas muitas das garrafas não agüentavam. E assim eu permanecia pensando: “-Vou esperar estourar mais uma!”.
Quem eram os proprietários da Livraria Brasil?
Eram Francisco Brasil, Paulo Brasil e Ary Brasil. Devo muito a eles, me ensinaram o valor da honestidade. Sempre diziam para mim: “-Se você caminhar pelo caminho da honestidade, ele será longo, mas você nunca irá chegar cansado”. Conheci Thales Castanho de Andrade, era um senhor baixinho, gordinho, muito simpático. Algumas vezes cheguei a atendê-lo na livraria. Um dia eles me deram 5 cruzeiros para abrir uma caderneta na Caixa Econômica. Tive orgulho em ver o meu nome na caderneta! Passei a economizar, juntar papel que a livraria descartava, era na época da guerra, papel dava um bom dinheirinho. Eu morava pegado onde hoje existe a Padaria Assagio. Eu vendia balas no Cinema São José, as balas eram feitas pela Dona Rosa do Amaral. Vendia também amendoim. Isso tudo em um tabuleiro que era dependurado no pescoço por uma correia de couro.
Com isso você aproveitava para ver os filmes?
Eu assistia vinte e poucos filmes por semana! Com os outros baleiros, apostávamos quem lia de trás para frente á legenda, de tanta prática que adquirimos em ver as legendas. Éramos quatro baleiros: Geraldo Pinto Pereira, Antonio de Barros, eu e mais outro, que no momento não me lembro do seu nome. Nós tínhamos o Cine São José voltado ao público popular e o Broadway, que era o cinema dos “granfinos”. Foi no Broadway que alguns estudantes da agronomia soltaram um urubu em plena sessão de cinema, causando grande alvoroço.
Você conheceu uma ex-escrava?
Conheci, era a Nhá Izabé, ela morava bem na esquina das Ruas do Rosário com a Rua XV de Novembro, ao lado do Dispensário dos Pobres. Ela era uma figura muito popular, conhecida na cidade inteira, todos gostavam muito dela. Se não me engano ela ganhou aquela esquina do pai ou do próprio Luiz Dias Gonzaga. Uma das filhas dela, a Conceição, foi empregada do meu avô.
Das muitas lembranças do centro de Piracicaba, algumas são muito marcantes?
A Leiteria Brasileira ficava embaixo do Clube Coronel Barbosa, bem na esquina. Eu passava para ir ali para ir até o correio que ficava na Rua Alferes José Caetano, esquina com a Rua Treze de Maio, onde hoje está instalada a Pizza do Bira. Um dia entrei na Leiteria Brasileira e pedi um café, que custava trinta centavos. Um senhor deve ter achado inusitado para aquela época, um menino tomando café. Disse-me: “-Deixe que eu pago para você!”. Eu gostei da idéia. Quando via o homem lá eu entrava para tomar um café. Ele pagava. Um dia iam servir o meu café quando ele chegou. Perguntei-lhe: “-O senhor quer tomar um café comigo?”. Ao que ele respondeu: “-Hoje vou aceitar o cafézinho seu”. Passei-lhe os 30 centavos e disse-lhe: “-Então o senhor toma o meu porque eu só tenho 30 centavos!”. Aí ele pagou tudo. Do outro lado, onde foi o prédio Comurba, da Rua São José para a Rua Prudente de Moraes, na esquina da Rua São José havia a Garaparia Seleta, logo em seguida era o Chalé do Losso, mais á frente era o depósito Maluf, não sei para qual dos membros da família Maluf pertencia. Era depósito de açúcar preto, o açúcar mascavo, nós pegávamos aquele açúcar de sacos que ás vezes estava furado. O que comíamos de açúcar mascavo! Mais a frente, havia a farmácia que mais tarde passou a chamar-se Farmácia São Paulo. Na Rua Prudente de Moraes esquina coma a Rua Alferes José Caetano havia a Loja da Lua. Em frente á mesma, havia a Farmácia Popular. Eu passava lá, ele me dava uma caixa de Cafiaspirina, que passava a ser a minha bolsa, onde punha meus caderninhos. Quando estava muito velha a caixa, eu pegava outra nova.
Há uma passagem marcante de um natal em sua família?
Eu tinha nove anos de idade. Era véspera de natal. Dois dos meus irmãos, já um pouco maiores do que os demais, já tinham conhecimento da existência de Papai Noel. Fui com eles até uma loja, era um irmão e uma irmã. A minha missão era induzi-los a gostar e querer ganhar o presente mais barato que pudesse encontrar. A nossa situação financeira era muito difícil. Minha mãe havia me incumbido de levá-los até lá, consegui convencer a minha irmãzinha a ganhar uma boneca de pano e para meu irmão um carrinho de madeira. Á noite, umas nove horas, os dois irmãozinhos foram dormir contentes porque iriam ganhar o presente de Papai Noel. Meu pai naquela época tinha caminhão de transportes, ele não havia chegado ainda. Quando ele não conseguia serviço, voltava bravo e sem dinheiro. Aquela noite, com certeza ele deveria chegar bem tarde e as crianças não teriam o presente de Papai Noel. Minha mãe começou a chorar. Ao vê-la assim, sai, fui até a loja, a dona era brava, disse-lhe que a minha mãe estava doente, se ela não poderia dar aquela boneca de pano e o caminhãozinho, para a minha mãe ver, se ela gostasse lhe traria o dinheiro. A loja estava com muitos clientes, preocupada com as vendas a dona embrulhou os dois presentes. Eu cheguei com ele na nossa casa. Minha mãe ficou admirada, perguntou de onde era. Eu disse-lhe que era da francesa. Era a Loja do Francez, ficava quase na esquina da Rua Alferes José Caetano com a Rua Prudente de Moraes, onde mais tarde funcionou o Fórum. Nós morávamos na esquina da Rua São José com a Rua do Rosário, no dia seguinte meu irmãozinho queria brincar com o caminhãozinho, a um quarteirão da loja. Ele ia à direção á loja, eu ficava o dia inteiro tomando conta dele com medo que a dona confiscasse o seu caminhãozinho. Para ir estudar no Moraes Barros eu ia pela Rua Tiradentes, para não passar próximo da loja. Meus coleguinhas me perguntavam por que eu dava aquela volta. Respondia: “É porque eu gosto de andar!”. Sempre me lembrava dessa dívida para com a loja, quando eu tive condições de pagar a loja não existia mais.
Você conheceu a Relojoaria Muller?
Tinha as portas de madeira! O Muller gostava muito de ler, ao entrar na relojoaria, com todas aquelas jóias, relógios expostos, precisava bater palmas para que ele viesse atender. Eu ia entregar encomendas, tinha que bater palmas. Naquela época o ladrão que existia era conhecido de todos, roubava galinhas, ele era conhecido como Peru. Na Paulista eu me lembro quando a partir de onde hoje é a Avenida do Café era plantação de Algodão. Na época do carnaval não era permitida a venda de bebida alcoólica. Um soldado prendeu um homem do sítio, porque ele estava bêbado em cima do cavalo. Isso foi na Rua do Rosário. O soldado vinha puxando o cavalo, para conduzir á cadeia na Rua São José, e o homem em cima do cavalo. Quando chegou à esquina da minha casa o homem tirou o freio do cavalo, o soldado ficou só com a rédea na mão e ele subiu a Rua do Rosário levantando uma poeira só! E a criançada dando vaia no soldado.
O senhor conheceu o Comendador Mário Dedini?
Conheci. Era um homem de uma simpatia muito grande. Na época em que casou a filha dele Dona Anita Dedini com o Ricciardi, fui entregar os convites de casamento que tinham sido feitos em São Paulo. Na Livraria Brasil eu ganhava 60 cruzeiros por mês. Quando entreguei o pacote com os convites, na residência do Comendador Mário Dedini, na Rua Santo Antonio, recebi 60 cruzeiros de gorjeta, quase morri de susto.
Na Livraria Brasil o senhor trabalho por quanto tempo?
Trabalhei por seis anos. Aos dezessete anos de idade pedi a conta, o Brasil me deu mais 500 contos de presente, passei a trabalhar com o meu irmão que já tinha conhecimento na área após 10 anos de trabalho no ramo relojoeiro e de confecções de peças sob encomenda. O dinheiro que nós tínhamos disponíveis era suficiente para comprar as ferramentas essenciais, ou adquiria o laminador, onde é colocado o metal para ser laminado. Compramos na Casa Camargo, que ficava na Rua Governador com a Rua XV de Novembro, mais tarde foi a Casa Siqueira. As primeiras peças que nós fizemos nós conversamos com o motorneiro do bonde para que ele passasse bem devagar, o peso do bonde sobre o trilho laminava o ouro. Um dia 4 gramas de ouro baixo (ouro mais barato) ficaram grudadas na roda do bonde! Ficamos subindo descendo, ia até o Assunção lá em baixo, procurando, Tinha sumido. Quase quebrou a firma naquele dia. Meu tio Miguel Tedesco soube do caso e nos chamou. Disse que comprássemos o laminador, ele emprestaria o dinheiro para nós e devagar nós iríamos pagá-lo.
Na Rua do Rosário, na altura do número 2547 havia uma bomba de gasolina da bandeira Texaco, o senhor lembra-se dela?
Lembro-me sim. Ficava junto á calçada. Lembro-me até da cor, era vermelha. Ficava bem na esquina com a Rua Edgar Conceição. Era de propriedade de José Nassif.
O senhor conheceu Frei Paulo?
Eu tinha de 9 a 10 anos de idade, e os meus coleguinhas iam aprender desenho e pintura, com Frei Paulo de Sorocaba. Pedi que eles conversassem com o frei se eu poderia ir. No outro dia, eles disseram que Frei Paulo tinha dito que eu poderia ir. Fiquei todo feliz porque iria aprender. Quando eles passaram para me chamar, estavam todos de sapato. Eu não tinha sapato, fiquei com vergonha de ir, se eu tivesse ido acho que o Frei Paulo iria cuidar mais de mim do que dos outros.


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