segunda-feira, dezembro 21, 2015

ALICE DAS DORES DIAS CARMO ( CONTINUAÇÃO DA ENTREVISTA)

PROGRAMA PIRACICABA HISTÓRIAS E MEMÓRIAS
JOÃO UMBERTO NASSIF
Jornalista e Radialista
joaonassif@gmail.com
Sábado 19 de dezembro de 2015.
Entrevista: Publicada aos sábados no caderno de domingo da Tribuna Piracicabana
As entrevistas também podem ser acessadas através dos seguintes endereços eletrônicos:
http://blognassif.blogspot.com/
http://www.teleresponde.com.br/
ENTREVISTADA: ALICE DAS DORES DIAS CARMO
                                    ( CONTINUAÇÃO DA ENTREVISTA)

Alice das Dores Dias Carmo nasceu a 19 de julho de 1918, tem 97 anos neste ano de 2015. Memória e disposição privilegiada a faz depositaria de parte da história recente. Continuando a narrar fatos da sua vida, transcritos no sábado passado, Da. Alice brinda os leitores com preciosas lembranças, aos que conheceram locais e fatos uma doce lembrança, aos que agora tomam conhecimento um enriquecimento cultural.
De que região de Portugal era a mãe da senhora?
Era de Macedo de Cavaleiros e o meu pai era de Bagueixe. Lá são denominadas aldeias o que no Brasil denominamos de bairros. Quando minha mãe chegou ao Brasil os bondes eram puxados por burros. Logo depois foram colocados os bondes elétricos. O bonde levava 22 minutos para fazer o trajeto. Saia do Largo do Correio. O ponto final era na Rua Formosa. O bonde dava a volta na Avenida São João, passava na porta do Correio, atravessava a Praça da Bandeira, subia a Rua Santo Antonio até a Rua Major Diogo, entrava a esquerda, na próxima rua entrava a direita na Rua São Domingos, na primeira a esquerda era a Rua Conselheiro Ramalho, ia até a esquina da Rua Brigadeiro Luiz Antonio. Lá ele subia dois quarteirões até a Rua Santa Madalena, vinha pela Rua Rui Barbosa, Rua Manoel Dutra, atravessava a Conselheiro Ramalho, entrava a esquerda na Rua Major Diogo, pegava a Rua Santo Antonio e já ia para a cidade outra vez. Às vezes a gente vinha dormindo, dependendo de onde estávamos já sabíamos que rua vinha a seguir.  Havia cinco bondes na Bela Vista. Era tão rápido esse percurso que quando um bonde vinha pela Rua Conselheiro Ramalho, esquina com a Rua Manoel Dutra, o condutor dava sinal para o motorneiro parar o bonde antes de chegar ao próximo ponto porque senão não dava tempo de cobrar. Alguns homens iam do outro lado do bonde para não pagar! 
A senhora tem vontade de voltar para Portugal?
Para passear sim. A casa da minha avó permanece como era antes. Lá as casas são feitas com cantaria, que aqui chamaríamos de pedra.
A senhora estudou no período em que morou em Portugal?
Estudei pouco, eu sempre gostei de ler, ler muito. Eu queria ir para a escola, mas não podia. Meu pai fez um banquinho com três pezinhos chamado tripeça. Fiz amizade com a professora Dona Elisa, eu pegava o meu banquinho embaixo do braço e ia junto com ela. Como não havia carteira escolar sobrando, ela colocava perto da escrivaninha dela. Eu ficava ali com ela. Eu tenho uma colcha de linho que me foi dada pela minha avó. Ela plantou o linho, é uma planta semelhante ao arroz, ela colheu o linho, dá muito trabalho, tem que lavar, esfregar, até que a minha avó fez um fio, usavam uma varinha, na cintura as mulheres usavam como se fosse um saquinho, para dar firmeza à varinha. O linho passa por um processo que fica semelhante a um algodão. Colocava-se um tubinho de fios e movimentava-se de um lado para outro. Aqui, tive uma irmã que com os pés mexia aquele tear. A roupa da casa da minha avó era toda feita em casa. A roupa dos homens, por dentro a capa era forrada com lã de carneiro. Minha mãe aos quarenta anos foi aprender a bordar a máquina. Antigamente vinha para o Brasil muita coisa da Argentina, dentro dos pneus de caminhões, os motoristas traziam e vendiam.
A senhora costura até hoje?
Costuro para mim!
A senhora usa máquina de costura?
Costuro a máquina.
E para colocar a linha na agulha da máquina a senhora aos 97 anos tem alguma dificuldade?
O meu médico Dr. Chakur fez essa mesma pergunta disse-lhe: “-Chamo os bombeiros!”. Às vezes peço ao meu filho, outras vezes pego algo branquinho, um pano ou papel, coloco ao fundo e com a claridade dá para ver perfeitamente o orifício da agulha por onde deve entrar a linha.
A senhora é bem saudável.
 Sou! Aos 92 anos eu fiz duas pontes e safena. Alimento-me bem, como de tudo, não sou de comer prato de trabalhador braçal, não tenho diabetes. De manhã levanto, como um pãozinho com manteiga ou uma fatia de queijo. Uma xícara de café com leite. Não repito. Entre o café da manhã e o almoço eu como uma fruta. Hoje comi duas ameixas vermelhas depois que almocei. Só duas coisas que não gosto: carne seca e dobradinha. Ao termino da refeição como uma fruta, uma fatia de mamão. Eu acho falta de doce e como doce, como uma fatia pequena, pode ser uma fatia de bolo.
A senhora cozinha?
Cozinho! Anteontem fiz bolo e patê de sardinha. Nunca bebi nem fumei. Meu marido fumava meus filhos também passaram a fumar. Em Portugal, todo o mundo tomava vinho tinto, sem que alguém se embriagasse. Lembro-me que na terra da minha mãe, Macedo de Cavaleiros, o que dava era castanha, noz, avelãs. O forte era a castanha.
A senhora acompanhava os movimentos musicais da época?
Tinha uma revista chamada “Carioca” que falava tudo sobre os músicos, as três irmãs: Linda, Dircinha e Odete Batista, sendo que eram estrelas consagradas, e as irmãs Linda e Dircinha faleceram vivendo muito tempo um quadro de extrema penúria. A Linda Batista tinha uma relação de amizade muito forte com Getulio Vargas assim como a vedete Virginia Lane.
A senhora lembra-se da época de Getúlio Vargas?
Lembro-me sim, do que passamos na época da Revolução de 1932. Não havia pão, o pão que comíamos era misturado com farinha de mandioca. Ia a meia-noite para a fila da padaria para pegar um pãozinho. Quando fomos à Portugal o reumatismo manifestou-se em minha mãe, no final do ano em Portugal é muito frio. Dezembro e janeiro eram os mêses em que comiam castanhas. Na casa da minha avó abatiam-se três porcos por ano, eles eram alimentados com castanhas. Primeiro dá a castanha crua, com casca e tudo. Com o passar do tempo eles ficavam enjoados, então se tirava a casca e cozinhava a castanha para dar aos porcos. A carne do porco é muito diferente da que temos aqui no nosso interior onde os porcos geralmente são alimentados inclusive com restos de comida. Na casa da minha avó tinha muitas castanheiras, uma árvore grande, forte, para colher apanha-se da árvore o ouriço, com uma luva, dentro tem duas a três castanhas. Um desses castanheiros caiu pero da casa da minha avó, todos os dias ela regava aquilo lá, dali é que saiam seis ou sete tipos de cogumelos.
E o bacalhau?
O bacalhau é mais encontrado nas cidades. O bacalhau do Porto é tradicional. Quem nasce no Porto chamam-se tripeiros. E quem nasce em Lisboa é conhecido como alfacinha. Porto é do mesmo tipo de São Paulo, trabalhadores, só pensam em trabalhar. E Lisboa é como o Rio de Janeiro, mais o movimento de turistas. Tenho uma prima que ainda tem uma casa em Macedo de Cavaleiros, terra da minha mãe, nos chamamos de “Casa das Avós”, todas as avós saíram dali. Os netos são criados ali. Reúnem-se lá. Esses dias ela me ligou dizendo que tinha adquirido um apartamento no Porto, no bairro chamado Gandra, isto porque no Porto não faz tanto frio como na aldeia. Popularmente, os tamancos têm as designações de socos. Lembro-me de meu pai ter comprado os socos (tamancos), brincarmos com as bolas de neve.
São Paulo teve bondes abertos e fechados, estes pintados de vermelho, que valeu o apelido dado pelo povo de “camarão”. A senhora lembra-se deles?
Lembro-me do bonde aberto. Pagava-se 200 réis! O “Cara Dura” era um tostão, era o bonde dos verdureiros, que tinham grandes hortas na Zona Leste, colocavam as verduras em sacos e vinham lá do fim da Zona Leste até a Penha, ali embarcavam no “Cara Dura” que era um bonde que só carregava verdureiros. Isso me faz lembrar de que os meninos gostavam de andar no “Cara Dura” para economizar. Quando fomos para Portugal não viajamos de primeira classe, mas tomávamos as refeições na primeira classe. Isso porque meu pai era barbeiro, andava com a malinha com as ferramentas necessárias ao ofício, ele subia ao primeiro andar, fazia a barba da tripulação, não cobrava nada. Na volta trazia a comida da primeira classe. Nós estávamos no convés do navio, os moleques lá embaixo, nadando, pedindo dinheiro, frutas. Isso eu vi fazerem, mostravam moedas para eles, iam do outro lado do navio e jogavam as moedas, os moleques iam por baixo do navio e iam pegar a moeda. A moeda demorava em afundar. Mergulhavam e passavam debaixo do casco do navio. Lembro-me de um dia em que veio um temporal muito forte, nós não tínhamos cabine. Antes de viajarmos, meu pai fez duas cadeiras espreguiçadeiras, dessas de praia, muita gente fazia isso, levamos no convés, meu pai e minha mãe iam deitados naquelas cadeiras. O navio mesmo emprestava cobertor para se cobrirem. No dia desse temporal mandaram todo o mundo que estava no convés deitar no chão. A água do mar entrava de um lado do navio e passava para o outro lado. Lembro-me muito bem da força que tem a água em alto mar. Atualmente existem muitos produtos para limpar o chão, na época só tinha a creolina. Um marinheiro jogava a creolina e esfregava, outro jogava a água. Caia em uma canaleta que jogava fora do navio.
A senhora lembra-se de algum fato muito marcante com algum passageiro?
Faleceu uma senhora, viajante, nossa amiga. Hoje há meios de conservar o corpo até a primeira cidade onde possa desembarcar, mas naquela época não havia meios apropriados para a conservação do corpo, eles fabricavam um caixão, de tal forma que entrasse água, na descida do caixão o navio quase parou, desceram com corda, devagarinho, até chegar à água. Colocavam materiais que fizesse o caixão ficar pesado, quando chegou à linha da água o navio apitou. O caixão afundou com o corpo da nossa amiga.
Havia certo conforto no navio?
A primeira vez em que vi um beliche foi no navio.
A senhora lembra-se de letras de músicas famosas?
Lembro-me da letra da musica “A Mulher Que Ficou Na Taça” com Francisco Alves, composição dele e de Orestes Barbosa: Fugindo da nostalgia/Vou procurar alegria/Na ilusão dos cabarés/Sinto beijos no meu rosto/E bebo por meu desgosto/Relembrando o que tu és/E quando bebendo espio/Uma taça que esvazio/Vejo uma visão qualquer/Não distingo bem o vulto/Mas deve ser do meu culto/O vulto dessa mulher.../Quanto mais ponho bebida/Mais a sombra colorida/Aparece ao meu olhar/Aumentando o sofrimento 
No cristal em que, sedento/Quero a paixão sufocar/E no anseio da desgraça/Encho mais a minha taça/Para afogar a visão/Quanto mais bebida eu ponho/Mais cresce a mulher no
sonho/Na taça, e no coração.
Como é bonita essa música, outro dia estava me lembrando. A melodia era linda, a letra. A gente acha que antigamente as letras tinham nexo. Gostava muito das musicas do Carlos Galhardo, musica que foi tocada quando casei. Onde hoje é chamada de Praça da Bandeira era chamado de Largo do Piques, ali enchia de água que era uma beleza!
Não existia ainda o túnel popularmente chamado de “Buraco do Adhemar”?
Isso veio depois de muitos anos. Na Avenida São João havia os corsos no carnaval. Como era bonito! A força do corso era na Avenida Celso Garcia, onde nós morávamos. 
Os carros enchiam tanto as rodas de serpentina que eles encostavam-se a uma travessa qualquer, para tirar, já tinha gente com sacos para pegar e vender o papel para reciclagem. Os carros eram quase todos de capota abaixada, o pessoal ia sentado na capota, iluminavam, era bonito! Meu pai tinha casa de móveis na Avenida Celso Garcia, aquele pessoal que morava nas ruas transversais onde não havia o corso ia até a minha casa, onde meu pai colocava uma tábua encostada na parede, para os amigos sentarem ali e ficarem assistindo o carnaval.
A família mudou-se para a Bela Vista?
Nós morávamos ao lado da Vila Pirani, próximo ao Pastifício João Caruso. Nós morávamos na Rua Rocha, eu estava no terraço costurando, três pontos de ônibus adiante já era a Praça da Bandeira. A cada pouco voava um papel meio queimado. Estranhei aquilo. A cada cinco minutos escutava a sirene de uma ambulância. Ali era a passagem das ambulâncias para a Rua Itapeva, Rua Pamplona. Fui até o quintal e vi o vento trazendo muito papel queimado. Fui até a frente de casa, a molecada toda correndo, fomos até a Avenida Nove de Julho. Ali dava aflição! Eu vi aquele pessoal lá em cima, no Edifício Joelma, nós embaixo gritávamos: Não! Não! Que não se jogassem. Eles se jogavam sim. Helicópteros pousavam em cima da Câmara Municipal de São Paulo, resgatavam a s pessoas e levavam para os hospitais.
Um parente da senhora destacou-se pela força física?
Meu avô, pai da minha mãe, levantava um sino de 25 arrobas, cada arroba tem 15 quilos, isso em Portugal. Na localidade já tinham feito uma igreja, iam colocar o sino, lá havia feiras uma vez por mês, e o sino exposto. Todos admirando –o. Meu avô suspendeu o sino por três vezes. Quando ele vinha do campo com o carro de boi carregando lenha ou mantimento, se por acaso entrasse uma roda em um buraco qualquer, ele com o ombro levantava o carro. Minha mãe mesmo era grandona, não eram gordos, mas eram fortes. Tanto que quando minha mãe casou o padre deu a aliança para minha mãe colocar no dedo do meu pai. Ele disse ao padre: “- Essa aliança não é minha, a minha é a pequena!”. Quando voltamos à Portugal levamos um gramofone.
A senhora lembra-se da Gazeta?     
Inicialmente ela ficava próxima a Rua Brigadeiro Tobias, depois que ela foi para a Avenida Paulista, ali ela tinha uma sirene que ao meio dia tocava, todos sabiam que horas eram. Nessa época eu morava na Rua Rocha. Quando mudamos a Rua Rocha era barro. Pegado onde era o Edifício Joelma, na Rua Santo Antonio, teve um crime pavoroso. Um dentista assassinou duas irmãs, a mãe e depois pôs fim a própria vida. Eu tinha uma amiga que trabalhava na Praça Patriarca na loja “A Exposição”, após o crime ter ocorrido, foi em uma manicure que passou a funcionar na casa. Ela disse-me: “– Alice, eu estava esperando para ser atendida, lembrei-me do crime que havia ocorrido ali, levantei-me e fui embora”. Lembro-me que na esquina da Avenida São João, em frente ao correio, havia um sinaleiro, ali ficava um guarda debaixo daquele sol de arrebentar, a cada duas horas era substituído, com uma manivela movimentavam o semáforo, dirigindo o trânsito.
Em 1954 foi comemorado o Quarto Centenário de São Paulo, a senhora lembra-se?
Foi uma festa linda! A famosa chuva de prata! (Ao cair da noite do dia 10 de julho de 1954, ocorreu a tão comentada “chuva de prata”, A idéia era jogar triângulos prateados ao povo.) Vieram os fuzileiros navais do Rio de Janeiro, tocando e cantando, nós ficávamos na boca do túnel da Avenida Nove de Julho assistindo. Era muito bonito. Eu gostava de ver as apresentações de fanfarras em 7 de setembro no Vale do Anhangabaú. Lembro-me que meu pai me levava para ver a chegada de navios em Santos. Quando chegou o navio  português “Santa Maria”, ele vinha vindo a noite, parecia uma cidade! Era lindo! Conheci o navio português “Serpa Pinto”. 

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