sábado, maio 13, 2017

FRANCISCA LUCILENE DA SILVA SANTOS


PROGRAMA PIRACICABA HISTÓRIAS E MEMÓRIAS
JOÃO UMBERTO NASSIF
Jornalista e Radialista
joaonassif@gmail.com
Sábado 06 de maio de 2017.
Entrevista: Publicada aos sábados no caderno de domingo da Tribuna Piracicabana
As entrevistas também podem ser acessadas através dos seguintes endereços eletrônicos:
http://blognassif.blogspot.com/
http://www.teleresponde.com.br/
 
 


ENTREVISTADA: FRANCISCA LUCILENE DA SILVA SANTOS
A entrevistada de hoje, atualmente com 42 anos, relata fatos acontecidos recentemente, a cerca de três décadas, facetas da realidade de nosso Brasil, que tem nuances da obra dostoievskiana. Ou de um romance de Victor Hugo. Uma história de extrema superação, provações, o limite do ser humano e o poder da sua força de vontade. É sem duvida uma história viva que envolve quase todos os sentimentos: amor, ódio, sabedoria, conhecimento, garra, luta, vitória, solidariedade, carinho, perdão. Francisca Lucilene da Silva Santos nasceu a 3 de janeiro de 1975 em Acopiara no estado do Ceará, filha de José Francisco da Slva e Maria Alacok dos Santos Silva que tiveram três filhas: Lucilane, que mora no Rio de Janeiro, outra filha é Luiciane que mora em Recife e Lucilene que reside em Piracicaba.



Você permaneceu em Acopiara até que idade?
Morei com meus pais até meus nove anos. Nesse período frequentei o que lá é chamado de prézinho, é a alfabetização. Para os pais não era importante os filhos estudarem, se soubesse escrever o nome para eles você já tinha estudado o máximo. Como as famílias eram muito pobres, geralmente colocavam os filhos para trabalharem na roça. As meninas de uma forma geral eram dadas para outras famílias, com mais posses, para serem empregadas domésticas, babás. Os meninos geralmente ficavam em casa para ajudar na lavoura.







A partir dos nove anos ocomo foi a sua vida?
Quando eu tinha quatro anos meus pais separam-se. Meu pai contraiu novas nupcias e eu passei a ser cuidada pela minha madrasta e pelo meu pai. Em uma cidade vizinha minha madrasta conheceu uma pessoa residente em Piracicaba. Essa pessoa pediu que ela lhe desse para cuidar , a minha irmã mais nova. Minha madrata disse-lhe que não poderia dar para essa senhora a minha irmã mais nova, isso porque o meu pai gostava muito dessa filha. A minha irmã mais velha também não porque ajudava nos serviços domésticos. Mas que eu estava disponível e também já sabia lavar roupa, limpar a casa.
Nessa época eu tinha nove anos. Minha madrasta perguntou ao meu pai se ela poderia me dar para essa pessoa. Meu pai respondeu afirmativamente. Um fato interessante é que ela citou que o nosso destino seria São Paulo, ela não mencionou Piracicaba. O que todos os nordestinos sabem é que são três dias de viagem até São Paulo em viagem feita de onibus.
Como voce se sentiu?




Senti que me invadiu uma sensação de que nunca mais iria ver o meu pai. Mesmo ele tendo me dado para aquela senhora, eu queria a minha família! ( Nesse momento uma forte emoção dificulta a narração de Lucilene). Nós morávamos em um sítio minúsculo, minha madrasta e meu pai me levaram logo muito cedo até essa cidade vizinha, quando foi chegando próximo o meu pai não quiz subir no onibus. Nós, nordestinos, (Lucilene narra com a voz carregada de emoção), pedimos para o pai abençoar-nos. É comum dizer: “Benção papai!”, quando chegamos ,partimos, dormimos  ou acordamos. Pedi para ele me abençoar, disse-lhe de costas voltadas à ele, isso para os costumes do local é imperdoável. Para mim tinha outro significado, eu não queria que ele visse que eu estava triste, que iria chorar. Não queria mostrar que ainda não era forte o suficiente para sobreviver no mundo. Mesmo assim meu pai me abençoou. Nesse momento minha madrasta entrou no ônibus e em diálogo com aquela senhora disse ter levado os meus documentos, só que eu não iria sem ter alguma compensação financeira. A senhora deu cinquenta cruzeiros e perguntou: “-Esse é o preço dela?”. Minha madrasta respondeu afirmativamente entregando os referidos documentos pessoais que permitiriam a minha viagem. Assim vim para Piracicaba.
Você foi vendida, como uma escrava, um objeto ou uma coisa?
Fui uma dessas crianças nordestinas que foram vendidas.
Voce passou a morar na casa dessa senhora até que idade?
Ela era casada, tinha um filho, assim que cheguei imaginei que iria estudar, como eu já tinha sido alfabetizada, sabia ler e escrever. Eu já gostava muito de ler, quando via uma figura, um livro eu viajava. Em Piracicaba tive que aprender a fazer os serviços que lá não existiam, Aqui tinha geladeira, televisão isso não existia onde eu morava. A própria forma de trabalho tive que aprender. Eu vim como empregada doméstica para ela.
Quanto você ganhava?
Ela não me pagava.
Como você se vestia?
As pessoas davam doações de roupas para ela e era o que eu usava, ela nunca comprou uma peça de roupa para mim.
Você sentava-se a mesa para tomar as refeições com a família?
Eu não comia com eles. Não podia. Eu pegava o meu prato, e ia comer na lavanderia. Isso para mim não era problema, porque nem comida eu tinha na casa dos meus pais. Na hora de comer eu  pensava nas minhas irmãs e em meu pai, imaginava que eles não deveriam estar comendo a mesma coisa do que eu. Eu sabia que um dia iria voltar à casa dos meus pais. Eu pensava: “-Não vou ficar sempre assim, vou crescer, ficar mais velha, vou voltar um dia”.
E porque você não deixava o emprego, onde não ganhava nada, além de roupas usadas e comida?
Ela me ameaçava com a polícia. Ela dizia: “-Se você tentar fugir a polícia irá lhe prender, você será presa!”. Eu não tinha cometido nenhum crime, só que eu não sabia que não seria presa sem ter cometido nenhum delito. Aos treze anos eu comecei a trabalhar no Mercado Municipal, no Pão de Queijo Mineiro. Ela que arrumou esse emprego para mim. Comecei trabalhando como balconista. O meu salário era integralmente entregue a essa senhora. O meu patrão era o Donizetti, já falecido.
Qual foi a sua sensação trabalhando junto ao público?
Lá eu me senti bem! Eu convivia com outras pessoas, trabalhando, ali tinha outras adolescentes. Era bom conviver com essas pessoas. Os donos do box, meus patrões, tornaram-se meus amigos. Ali eu me sentia bem. Lembro-me que pegava o onibus as cinco e meia da manhã, morava no bairro Santa Rosa. Era para trabalhar até as duas horas da tarde, eu pedia para fazer hora extra, Pedia para ficar, já que eu não iria para a escola, para mim não era importante ficar lá na casa. Quando essa senhora e o seu marido brigavam geralmente eu era o ponto de descarga da ira dos dois, isso sem nenhum motivo. Ela me agredia fisicamente. O filho também me agredia. O ex-marido, já falecido, tentava me seduzir. Eu relatava isso à ela, por incrivel que pareça ela se revoltava contra mim. O argumento que ela utilizava é que eu não me vestia de forma adquada. Minha roupa era a mais discreta possível, uma calça jeans e uma camiseta, Não chamava a atenção de ninguém.
Esse senhor era alcoolatra?
Sim! E ela também! Bebiam todos os dias.
Após sair da casa dessa senhora voce teve algum contato com ela?
Em 2014 fui visitá-la. Para que eu me sentisse melhor fui até lá, dar um abraço nela, acho que eu precisava mais daquele abraço do que ela. Eu estava com 39 anos.
No Mercado Municipal você permaneceu por quanto tempo?
Fiquei por dois anos, eu contei ao meu patrão que essa pessoa que dizia ser minha tia não era parente minha, relatei a situação como havia chegado à Piracicaba. Meu patrão entrou em contato com o Conselho Tutelar, essas pessoas não puderam mais ficar comigo, fui mandada de volta para a casa do meu pai. O Conselho Tutelar de Piracicaba entrou em contato com o Conselho Tutelar no Ceará, meu pai teve que me esperar na rodoviária, viajei com autorização do Juizado de Menores. Eu estava com 15 anos. Recebi os valores aos quais eu tinha direito, esses valores recebi integralmente.Fui embora. Quando cheguei meu pai estava me esperando na rodoviária, junto com um conselheiro tutelar. Meu pai levou-me para o sítio. Entreguei a ele a importância que havia recebido quando deixei o emprego no Mercado Municipal.
Como você foi recebida na casa do seu pai?
Sofri preconceito por parte do meu pai, da minha madrasta e das minhas irmãs. O meu pai  achava que eu tinha ficado em Piracicaba e tinha me prostituido, coisas desse gênero. Nessa época eu já tinha uma carteira de trabalho assinada. Mostrei ao meu pai. Eu não podia sentar nos mesmos lugares que as minhas irmãs sentavam, ficou reservado meu copo, meu prato, uma colher, meu lugar para sentar-me e uma rede. As roupas que havia levado, que eles consideravam que eram roupas boas para lá, foram passadas para as minhas irmãs. Algumas roupas velhas das minhas irmãs foram passadas para mim.
Qual foi o serviço que você foi fazer?
Fui trabalhar na roça, fui colher algodão. Eu queria voltar para Piracicaba, não àquelas pessoas que me trouxeram pela primeira vez, mas para os amigos que eu conheci. Trabalhando no box do Mercado Municipal eu fiz muitos amigos em Piracicaba. Eu tinha uma amiga, escrevi para ela, disse-lhe que precisava de ajuda, ela disse que eu poderia ficar em sua casa até arrumar um local para morar. Disse ao meu pai que eu ia voltar para cá, ele gostou, disse-me para não esquecer de mandar uma ajuda financeira. Voltei e fui trabalhar em uma padaria no bairro Santa Rosa. A senhora que tinha me trazido tinha um bar, eu trabalhava meio período na padaria e meio período no bar da sua propriedade.
Você recebia algum dinheiro para trabalhar no bar da mulher que um dia a havia comprado?
Não recebia nada, mas também não havia guardado nenhum rancor por ela. Eu sabia que não estva debaixo do teto dela e que o seu marido não poderia tentar fazer algum tipo de assédio. Ela sempre me prometia que iria me ajudar. Por um ano trabalhei com ela sem que ela me desse absolutamente nada. Disse-me que o dinheiro que teria para receber era o valor que eu estava pagando pela minha liberdade. Ai eu parei de trabalhar para ela. Continuei trabalhando na padaria, conheci uma pessoa, começamos a namorar, casei, tivemos três filhos: Alef, Carla e Ana Júlia. Permanecemos casados durante doze anos. O casamento já estava bem desgastado quando fiquei grávida da minha terceira filha. Foi um momento decisivo, ele não pretendia ter um terceiro filho, tive que fazer a escolha entre minha filha ou ele, Escolhi uma das pessoas mais preciosas da minha vida, a minha filha Ana Julia. O comportamento dele mudou muito, tornou-se agressivo, ausente. Passei por violência doméstica. Ele não admitia que eu saisse de casa para trabalhar. Ele dizia que não queria passar vergonha junto a seus amigos, dizendo que a sua mulher era uma empregada doméstica. Adquiri cicatrizes físicas, em meu rosto inclusive. Fiz vários Boletins de Ocorrências que não o demoveram de continuar a me maltratar.
Vocês divorciaram-se ?
Quando a Ana Julia completou quatro anos eu disse-lhe que queria acabar o casamento, queria que ele fosse embora. Ele disse-me que como era eu quem estava querendo terminar o casamento deveria me retirar e levar os filhos. Na noite em que eu manifestei a minha decisão, estava com a minha filha no colo, fui agredidada violentamente, coisas que a minha filha viu e guardou com ela. Imediatamente fui colocada para fora de casa com as crianças, fui acolhida por uma amiga que era minha vizinha. No dia seguinte decidi arrumar um comodo que fosse, iria pagar com o meu trabalho de faxina. Arrumei dois comodos. Por dentro estam rebocados, por fora não. Não tinha mais nada: vaso sanitário, pia, chuveiro, eram paredes nuas. Os vizinhos se mobilizaram e começaram a trazer cada um uma coisa: cama, botijão de gáz, torneiras, alimentos, fogão. Ai eu fui procurar trabalho. Na época a faxina custava R$ 30,00 eu dizia: “Faço para você por R$ 10,00! Se não gostar você nem me paga.” Consegui em duas semanas juntar o dinheiro do aluguel, que era R$ 250,00 incluindo água e luz, Fiquei feliz, porque agora eu sabia que aquilo chamava-se liberdade! Eu podia deitar em minha cama e dormir sem sobressaltos. Um aspecto que pesava muito é que além de ser ameaçada as crianças também sofriam ameaças. Isso causou feridas emocionais muito profundas. Eu ia trabalhar, as crianças ficavam em casa, sozinhas. Tinhamos ganhado um guarda roupa, que por falta de roupas estava vazio, o combinado era de que se escutassem um barulho na porta entrariam no guarda roupas e fechariam a porta do movel. Isso foi por sugestão da minha filha que na época tinha de oito para nove anos.
Seus filhos passavam o dia sozinhos, trancados nos dois comodos?
Exatamente. Só que os vizinhos vinham trazer a comida. Eu me preocupava muito com a segurança deles, tinha uma porta de vidro, com uma abertura, elas eram orientdas por mim para pegarem a comida por ali. A minha recomendação era de que não abrissem a porta para ninguém. Embaixo da cama tinha um colchãozinho e um travesseiro para elas deitarem. Vivemos um bom tempo assim. Elas me aguardavam chegar para tomarem banho. Com o passar do tempo elas passaram a ir para a creche, a mais velha passou a ir para a escola, foram amudurecendo.  Minha irmã do Rio de Janeiro convidou-nos para ir morar lá. Fui para o Rio de Janeiro com as crianças. Ficamos em uma cidadezinha chamada Conceição de Macabu. A minha filha teve problemas de desidratação em alto grau por causa do calor. Voltamos para Piracicaba.
E você voltou a trabalhar?
Fui trabalhar como empregada doméstica para umas pessoas maravilhosas, que amo até hoje que são Dona Regina e Seu Jayme Duarte, moram na Rua João Bottene, na Vila Monteiro. Eles me ajudaram muito. Eu não tinha uma geladeira,eles tiraram uma geladeira para mim, uma cama para as minhas filhas, até mesmo o luxo de um celular! Eu digo para eles que me tornaram uma pessoa rica. Seu Jayme perguntou se eu gostava de ler, quando respondi que gostava ele deu-me um livro, ele me incentivava para voltar para a escola, eu tinha uns trinta e três anos. Achava que estava velha para estudar. Meus filhos estudavam: na Escola Municipal Professor Francisco de Almeida Kronka, uma filha estudava na Escola Professora  Abigail De Azevedo Grillo, na Escola Estadual Comendador Mário Dedini. Mesmo mudando de bairro eu sempre as coloquei na escola.
Você tinha um sonho, ver um time de futebol?
Tinha o sonho de ir até o Estádio do Morumbi, ver o São Paulo jogar. Os filhos do Seu Jayme me arrumaram o ingresso, fui até o Morumbi assistir o jogo. Ele tinha um filho corintiano tinhamos uma rivalidade futebolistica bem acentuda! Eu já me considerava uma pessoa feliz.


                                            SÃO PAULO FUTEBOL CLUB


            HINO DO CORINTHIANS




HINO DO XV DE NOVEMBRO DE PIRACICABA (OFICIAL)




                     HINO DO XV DE NOVEMBRO DE PIRACICABA (POPULAR)

Voce chegou a conhecer alguém, um outro companheiro?
Conheci o Richard dos Santos. Ele é jardineiro. Como já tinha passado por experiências inesquecíveis, não pretendia repeti-las. O tempo foi passando ele sempre conversando comigo. Pegávamos o mesmo ônibus para ir trabalhar. Eu gostei do jeito dele,  quando ele não estava no ônibus eu sentia sua falta, daquela pessoa para conversar, uma pessoa inteligente, que me ouvia. Ele ia até a minha casa para conversar, mas não entrava, eu não queria. Ali era o nosso espaço sagrado, meu e dos meus filhos. Ficávamos conversando na calçada. As vezes ele levava algo para comermos, comíamos ali mesmo na calçada. Até que após ele insistir muito fui conhecer a sua família., sua mãe, irmã. Aos poucou fui me sentindo segura no seio dessa família. Até o dia em que o Richard perguntou-me na frente da sua mãe se eu aceitava namorar com ele. Minhas filhas estavam juntas, também tomaram partido dele e disseram-me para aceitar. Aceitei.
                                      COM SEU MARIDO RICHARD DOS SANTOS










     UM DOS LIVROS QUE GUARDA COM MUITO CARINHO: FOI UM PRESENTE            ESPECIAL, ERA UM DOS PREFERIDOS DE UMA SENHORA QUE AMAVA LIVROS.
SUA FILHA DOOU PARA LUCIANE COMO PROVA DE AMIZADE.

Você sempre menciona suas filhas e o seu filho?
Ele estava no nordeste, morava com uma tia minha, depois veio morar em Barueri, com um tio dele, ele é ajudante de padeiro, lá ele ficava também por causa da academia, ele luta Muay Thai ,está em Piracicaba ha uns três anos.
Você e o Richard se casaram?
Moramos juntos por uns quatro anos, ele sempre insistindo em casarmos. Quando fomos casar desbrimos que eu ainda não estava divorciada. Quando saiu o divórcio, marcamos a data do casamento. Dia 8 de novembro de 2014.
Qual foi o traje que usaram no casamento civil?
Eu realizei um sonho, casei usando a camisa do São Paulo. Ele usou terno. O casamento foi no civil. As vezes eu acordo e penso, será que isso está mesmo acontecendo? Minhas filhas confiam nele, o chamam de pai. Dentro do meu lar existe proteção, nunca serei agredida, nem com palavras. Ele nunca falou com tom de voz mais alto sequer. A minha filha mais nova perguntou-lhe um dia: “- Richard, eu posso lhe chamar de pai?” . Ele respondeu: “-Claro filha!”. Ela se emocionaou, saiu gritando pelo quintal, abraçou a amiguinha dela e disse: “- Eu tenho um pai!”. Eu não sabia que isso fazia falta para ela. A figura paterna fazia falta para ela. Passou um tempo a minha filha mais velha foi chamando-o de “Papi”. Naturalmente passou a chama-lo de pai. O meu filho considera o Richard como seu melhor amigo, O Richard tem 31 anos. Minha sogra os chama de netos. É um tesouro da minha vida tudo isso.
Como é a sua alimentação?
Não como carne, nada de origem animal. Sou vegana por respeito a vida dos animais. Assim como não quero morrer também não quero que nenhum animal morra. Ainda mais eles tão inocentes. Será que não temos uma outra chance? Essa chance também quero dar aos animais. Não tenho o direito de tirar a vida deles. Eu acredito que existe um criador. Se eu vestir uma calça vermelha e uma blusa verde vai ficar muito estranho. Mas uma árvore? Verde com flor vermelha! E assim muitas coisas, sou encantada com a natureza.
Você gosta de ler?
Muito ! Sempre tive livros. O primeiro autor que li foi Machado de Assis. Ganhei na mesma época um livro editado pelas Testemunhas de Jeová: “Histórias Bíblicas”. Tinha ilustrações que eu achava maravilhosas. Muitas vezes eu passava em frente  alguma casa e via alguns livros, com a maior naturalidade perguntava se a pessoa não tinha nenhum livro para doar. Com isso ganhei muitos livros. Aprendi a ler melhor, hoje leio um pouco de tudo. Eu tenho o curso primário, que por força de lei fui obrigada a fazer para receber meus direitos trabalhistas.
Você tem preferência por algum tipo de leitura?
Não tenho preferência, existe livros que eu não leio. Não leio aquilo que não acrescenta nada à minha vida. Os demais leio de tudo.
Você tem uma idéia de quantos livros já leu?
Devo ter lido aproximadamente uns mil livros. Se for um final de semana, de sexta para sábado, leio um livro. Gosto muito de Agatha Christie.Gosto do gênero que envolve investigação. Mas leio de tudo, enciclopédias.
Você já leu “O Príncipe”?
Li “O Príncipe” de Nicolau Maquiavel. Achei interessante, é um estrategista, ele não valoriza as pessoas, isso fica claro quando ele escreve “mate todos os seus inimigos e se precisar os seus amigos o restante não interessa”.
Sob o seu ponto de vista existem príncipes como o descrito por Maquiavel nos dias atuais?
Existe e muitos. Acho que isso que está acabando com a classe pobre.
O que desperta uma grande admiração em você é a sua vontade, sua gana, em vencer através da cultura.
Com as minhas filhas conversamos sobre religião, política, todos os assuntos. Eu digo à elas: O que o governo quer de nós? Para ele nós não precisamos mais estudar. Quanto maior for o seu conhecimento é pior para eles. Você irá querer igualdade. E o que irá fazer? Irá incentivar. Aqui na minha casa você irá dizer as coisas que você pensa, mas irá falar com respeito comigo. Infelizmente há pessoas que quando você expõe seu pensamento ela vem agredi-lo. Eu não sou de direita, não sou de esquerda, sou pela igualdade. Eu assisto o horário de propaganda eleitoral, fico muitas vezes pensando, a pessoa tem um bom nível de estudos, porque fica ofendendo as pessoas? Política se discute, mas jamais empurrar um político garganta abaixo.
O que está faltando para você retomar os estudos?
Eu queria fazer necropsia. Sou apaixonada pelo corpo humano, por tudo que existe dentro de nós, essa máquina perfeita que somos.
Você realiza ações beneficentes, humanitárias, por iniciativa própria e outras através de grupos?
Eu e toda a minha família atuamos como voluntários da entidade Gatos do Cemitério da Saudade, O objetivo de nossa comunidade é aproximar as pessoas da realidade dos gatos que são constantemente abandonados nas ruas e nos cemitérios de Piracicaba. Outra ação que fazemos é com os moradores de rua de Piracicaba. Geralmente quando está chegando o inverno arrecadamos roupas, agasalhos, distribuímos diretamente à eles nos pontos em que eles ficam. Eu, meu marido, minhas filhas, preparávamos 100 refeições e levávamos para eles, Não tínhamos como levar de ônibus essa quantidade toda. Conseguimos com que algumas pessoas participassem, mas chega uma hora que essas pessoas cansam. Não temos mais como levar. A nossa expectativa é de conseguirmos um veiculo para transportar o alimento e os sucos que são distribuídos. Essas pessoas que estão na rua não precisam apenas de alimentos, precisam de roupas, de respeito, tem pessoas que estão na rua por serem dependentes químicos, eles mesmos dizem. Levávamos o alimento e sentávamos, conversávamos um pouco. Conhecíamos uma parte da realidade deles. A ponto de quando faltava alguém em algum local onde distribuíamos eu sabia quem estava ausente.
Você tem um projeto para minimizar essa situação?
Já transmiti por e-mail à autoridade competente, trata-se de um projeto muito simples, de baixo custo. Em alguma área que estivesse disponível, construir um barracão grande, por mais rústico que seja, com camas de alvenaria, um chuveiro, uma pia para eles lavarem suas roupas, funcionaria como abrigo em dias de chuva. Tanto no Natal como no Ano Novo eles são tirados das ruas. Eles têm que se esconderem. Há uma determinação de que a cidade tem que estar “limpa”. As roupas deles são jogadas no lixo. No Natal e no Ano Novo não se encontra morador de rua na praça. Nem eu sabia aonde levar comida para eles. Às vezes levava as marmitas e voltava com elas porque não encontrava ninguém.
Quem arcava com os custos dessas marmitas?
Eu e meu marido. Algumas pessoas começaram a se juntar conosco. Se eu vejo alguém com frio eu me sinto mal, eu passei esse frio.
Como é o processo da lona plástica?
O metro da lona plástica não é muito caro. Quando vou comprar peço para eles cortarem de dois em dois metros. Colocam a lona no chão, em cima põem o papelão deles, Cobrem o papelão com a lona. Outros colocavam a lona embaixo do papelão, e a outra ponta sobre as cobertas. Essas coisas eles já não tem mais, eles não ficam o ano inteiro com alguma coisa. Mesmo a roupa, pelo fato de não ter onde lavar chega uma hora que eles têm que jogar fora.
A seu ver o que falta à essas pessoas?
Falta tudo! Falta dignidade! A meu ver, a Igreja, o vereador, o prefeito, eu diarista, temos responsabilidade sobre essas pessoas. Tem que acabar com essa história de ficar esperando tudo do governo. Como você vai cobrar se uma determinada rua está alagada se ao passar você jogou um papel? Falta espírito de comunidade, as pessoas têm que se unirem. Algumas pessoas fazem atos de benemerência, mas fotografam, divulgam, Outros interesses as movem. Minha filha com treze anos nos acompanhava, mostrávamos uma realidade que ela não conhecia. Quando entravamos em nossa casa perguntava a ela: O que você sente? Que somos ricos perto deles! Para que vou querer um sofá novo se o que tenho está perfeito e me atende? Se por acaso todos os lugares do sofá, poltronas e baquinhos estiverem ocupados, a pessoa pode sentar-se no meu chão porque ele é limpo! Eu ganhei meu celular da minha patroa senão estaria usando um que é muito antigo. Passei o antigo para a Ana Júlia. Ela preferiu que o mesmo valor que eu gastei com o celular da irmã mais velha fosse aplicado na aquisição de livros que ela, Ana Julia, queria. Ela fez uma lista de livros, só que se fosse comprar todos aqueles livros daria mais. A Gatos do Cemitério arrecada doações para arcar com algumas despesas com médicos veterinários, remédios, decidi fazer um bazar de livros este ano. Postei no meu facebook. A nossa presidente Elcian Granado colocou no face dela, A Sra. Marta Alleoni doou os livros que foram da sua mãe. Ela disse-me que gostaria que eu ficasse com pelo menos um livro porque eu tinha o mesmo amor pelos livros que a sua mãe tinha. Fiquei com o livro “E O Vento Levou”, eu sabia que ali havia um tesouro. Os outros livros poderiam ser vendidos, esse livro que ficou comigo precisa ser restaurado. Era o único, os outros estavam todos encadernados, ela cobria os livros. Conseguimos vender, eu não quis pegar esse dinheiro em minha mão, foi direto para as clínicas.
Você tem uma filha autodidata em uma língua estrangeira?
A Ana Júlia tem treze anos, começou a se interessar quando conhecemos o Richard, ele gosta de assistir animes em japonês, ela se interessou, gostou do som das palavras, as vezes ela assistia em português, com a legenda em português, ela dava pausa na televisão e ficava horas escrevendo, começou gradativamente a falar e foi absorvendo a cultura japonesa. Não só pelos animes, mas por tudo. Ela desenha, os desenhos que ela faz são todos ligados a cultura japonesa. Eu mostrei o material dela para uma escola de desenhistas profissionais e se ela fosse entrar já iria para a turma avançada. Estou tentando arrumar mais dias como diarista para pagar o curso para ela.
Você investe muito em livros?
Eu não me interesso em adquirir o último modelo de celular, ou adquirir uma televisão nova, minha televisão fica dias desligada. Não me interessa uma roupa nova. Essas coisas para mim não tem valor. Se eu sair para adquirir um tênis, fico pensando, mas eu tenho ainda aquele tênis.  Quando vou comprar procuro adquirir um resistente. Não preciso daquele tênis, mas preciso daquele livro! Passo nas livrarias que vendem livros de segunda mão (sebos), aquele livro chama outros livros.
Sua filha lê o que está escrito em japonês?
Lê! Aprendeu sozinha! Inclusive ela chegou a conversar com japoneses mesmo, eles me disseram que ela falava muito bem.
Ela tem vontade de ir para o Japão?
Ela quer ser Mangaká (cartunista ou quadrinhista)
A chamada “depressão” que afeta o jovem hoje pode ter várias causas você pode identificar alguma?
A depressão da juventude pode ter origem em passar o dia inteiro na internet, ali estão expostos todos os modelos ideais de corpo, produtos de consumo, só que isso nem sempre é possível ser realizado ou acessado. Existe um mundo artificial, criado com inúmeras cirurgias plásticas, tratamentos de imagens, há jovens que se frustam facilmente por não terem nada disso. Seus idolos são artificiais. Um livro é uma viagem. Para ler um livro não gosto de roupa apertada. Não quero nada que me incomode. Fecho a porta do meu quarto, meus filhos não me incomadam, se quiserem alguma coisa dão aquela batidinha na porta. Faço o mesmo com eles quando estão lendo. É uma viagem. Para onde você vai?  Eu estava lendo “O Fantasma da Ópera” eu não vou querer ter a aparência do Fantasma e não vou ter a aparência da Christine você tem uma idéia, cria uma aparência, mas vai criar aquela história. Ele pegou aquela rua deserta, onde todas as janelas eram pintadas uma de azul outra de amarela, são coisas em que você tem no que pensar. Por exemplo, ela caiu no lago, você também cai!  Eu vivencio a personagem. Acho que os jovens precisam dessa viagem para o lado bom. Tem um livro que eu estava lendo, “O Oceano no Fim do Caminho”, é uma criança filha de pais carinhosos, mas que tem que se distanciar para trabalhar, eu vivi os lados da mãe que tem que sair e deixar o filho. Eu me identifico com essa situação. Li os três livros de Jogos Vorazes, adquiri no Recanto dos Livros do Lar dos Velhinhos, eu me emocionei, aquela jovem era só uma menina. Ela queria apenas viver. Ela teve que batalhar pela familia, o seu pai foi morto pelo governo, eles tinham liberdade restrita.
Você lê vários livros ao mesmo tempo?
Não! Levo um livro na minha bolsa para ler no onbus. Outro livro leio em casa. Esses dias pensei, estou com 42 anos e nunca li Dom Casmurro! É isso que acho que falta. No quarto das minhas filhas não tem televisão. Quando uma delas chega, muitas vezes conversamos sobre livros, uma delas me indicou “Caixa de Pássaros”. Ela advertiu-me: “-Você vai detestar o final, mãe!”. Eu não detestei o final, é a história de uma mulher forte, ela tem que batalhar por dois filhos, em um lugar que tem monstros, geralmente esses monstros eu não vejo como aquela criatura horrenda, vejo como o sistema de hoje. Tem uma criaturas que eles não podem olhar que enlouquecem. O que não podemos olhar hoje que a gente enlouquece? Você vai pensar nos direitos que nós não temos mais! Na educação que não podemaos mais dar para nossos filhos. Eu não sonho por mim, sonho para meu filhos, o meu sonho para eles não é eu querer que você seja isso, ou faça aquilo. Quero que você seja feliz. E aprenda a batalhar pelas coisas que você quer! Já começa a apender em casa, levantou-se, arruma a sua cama, seu quarto. Comeu, lava seu prato. Eu não sou dura com os meus filhos, é a realidade! Quando eu estava grávida eu lia para os meus filhos. Cada uum dos meus filhos tem uma música.
Essas histórias e essas músicas voce contava e cantava enquanto eles ainda estavam em seu ventre?
Exatamente! Para o meu filho a música que eu cantava era Tente Outra Vez;  da minha filha maios velha: Como é Grande o Meu Amor Por Você e da Ana Júlia é Eu Sei Que Vou Te Amar. (Lucilene emociona-se muito). Você tem que mostrar aos filhos que as coisas são difíceis, mas não tão dificeis que eles não consigam alcançar.
Você lê jornal?
Gosto muito do jornal impresso. Tem muits informações boas, coisas que acontecem em sua cidade. Gosto de ler crônicas. Outra coisa importante é na escola tratar muito bem os professores, não há nada na vida que você não consiga se não tiver um professor. Se não fosse a minha primeira professora, que me alfabetizou, a Dona Soleni, eu não teria aprendido a ler. Foi a pessoa que abriu os meus olhos. Os pais devem orientar os filhos para respeitarem os professores. Alguns professores vão para a escola amendrontados as vezes. Se você tem um filho violento, precisa de ajuda, procure uma psicóloga para ele. Converse com ele.
Seu pai está vivo?
Sim, está vivo. Ele mora no mesmo lugar, tenho contato com ele. A madrasta também está viva, hoje ela me trata bem. Mandei um aparelho celulr para o meu pai, quando eu ligo para saber como ele esta, algumas vezes mandei dinheiro para comprar remédio ou o próprio remédio daqui para lá. Não é porque ele foi um maior incapaz de cuidar dos filhos que eu devo ter raiva.
Você colocou uma situação que aconteceu no nordeste, a seu ver isto pode ocorrer em qualquer parte do país inclusive aqui?
Perfeitamente, pode acontecer em qualquer local, inclusive presenciei aqui em Piracicaba fato semelhante. A violencia, falta da presença paterna.
Você já pensou em escrever um livro?
Minha filha escreveu para mim, um cordel. De tudo que me aconteceu eu sempre sai com dignidade, sempre me respeitei. Quem deve sentir vergonha é o agressor e não a pessoa que é agredida. Muita gente não está preprada para ter filhos. Os pais não impõem limites aos filhos. Um filho com 20 anos deixa o tenis no meio da sala, a mãe vai e guarda. Considero isso um absurdo! Os pais tem que ensinar os filhos e não fazer por eles.
Você é a favor do controle da natalidade?
Sou! Quando a Ana Julia Nasceu eu fiz laqueadura, consegui na justiça. Essas pessoas que estão na rua, que necessitam de um livro, comida, um abraço, não negue, o rico é aquele que pode dividir, não importa o quanto ganha. Principalmente para esses irmãos que vivem na rua, tanto irmãos animais como nossos irmãos humanos. Eles já vivem tão sem dignidade ali. Eles não são invisiveis. Não são lixo. Eles precisam de nós. Estão deixando enfeiada a cidade, deixando suja? É só aquele espaço que eles tem. A gente pode fazer algo melhor para eles, eu não me conformo em não ter feito nada para ajudar.
Voce acredita que uma ação sem engajamento político, bandeira religiosa, um envolvimento do ser humano para com o ser humano de resultado?
A maioria somos nós, não somos pequenos, só estamos de joelhos, no dia em que nos unirmos vamos lutar pelo que acreditamos. A minha patroa paga o meu salário e exige conforme deseja. Os governantes não recebem salário que nós pagamos? Então não deixam de sererm nossos funcionários! As  pessoas tem medo de cobrar! Chegar junto a um político bajulando ou endeusando eles, não está correto. Eles trabalham para nós.Vamos tratar de igual para igual, falar com eles. Vamos cobrar. Exigir. Só que as pessoas tem medo disso. As mulheres vítimas de violência não se envergonhem, denunciem o agressor.


LUCILENE E SUA FILHA ANA JÚLIA, DE APENAS 13 ANOS.
ANA JÚLIA É AUDIDATA, FALA E ESCREVE FLUENTEMENTE JAPONÊS.
 APRENDEU COM MUITAS HORAS DE DEDICAÇÃO APENAS OBSERVANDO FILMES JAPONESES. 
 ARTISTA, DESENHA MANGÁ, DESENHO TÍPICO DO JAPÃO, USA MATERIAL IMPROVISADO, ADQUIRIDO EM PAPELARIAS COMUNS.
O SEU SONHO É IR PARA O JAPÃO.




 
                                                                                  
 
 
 




























Um comentário:

Laíza disse...

Eu amei essa história! Dignidade e respeito, heróis brasileiros que nunca serão conhecidos e reconhecidos, mas que salgam a terra, ou seja, conservam.

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