PROGRAMA PIRACICABA HISTÓRIAS E
MEMÓRIAS
JOÃO UMBERTO NASSIF
Jornalista e Radialista
joaonassif@gmail.com
Sábado 27 de fevereiro de 2015.
JOÃO UMBERTO NASSIF
Jornalista e Radialista
joaonassif@gmail.com
Sábado 27 de fevereiro de 2015.
Entrevista: Publicada aos sábados
no caderno de domingo da Tribuna Piracicabana
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ENTREVISTADA: CECÍLIA SODERO POUSA
A religiosa Irmã Cecília Sodero Pousa nasceu em Piracicaba a 31 de dezembro de 1931 a Rua do Rosário, nas proximidades do Grupo Escolar Moraes Barros.
ENTREVISTADA: CECÍLIA SODERO POUSA
A religiosa Irmã Cecília Sodero Pousa nasceu em Piracicaba a 31 de dezembro de 1931 a Rua do Rosário, nas proximidades do Grupo Escolar Moraes Barros.
A que distância do Grupo Moraes
Barros ficava a residência da família da senhora?
Fica a apenas duas quadras, no
sentido centro bairro. Era uma rua por onde o bonde passava, Dizem que nasci
assim que o bonde passou, às oito horas e vinte minutos da noite. Sou filha de
Orlandina Sodero Pousa e José Pousa de Toledo, ambos eram professores. Papai
lecionava no bairro Pau Queimado, ele não saiu de lá por sua própria opção, ele
queria lecionar no meio dos trabalhadores, agricultores.
Qual era o meio de transporte que
ele utilizava para ir até a escola?
Usava seu próprio carro, sendo
que levava também outras professoras.
A senhora lembra-se que modelo de
carro que ele utilizava?
Sei que em certo momento ele
utilizava uma “baratinha” azul. Eram veículos da época.
A senhora teve irmãos?
Tive uma irmã, Ângela Pousa de
Coimbra casada com Plauto Lapa Coimbra, filho do Sr. Lamartine Teixeira
Coimbra, que era Diretor do Instituto de Educação Sud Mennucci O Plauto era sociólogo e advogado, trabalhou
muito na área jurídica em Piracicaba. Isso na década de 50. A minha irmã era
professora, ocupava cargos de orientação de ensino.
A senhora começou seus estudos em
qual escola?
Foi no Grupo Escolar Moraes
Barros. Minha primeira professora foi Dona Elisa Magalhães, ela deu aulas nos
meus quatro primeiros anos. Conclui o primário e fui prestar exame no Instituto
de Educação Sud Mennucci para entrar no ginásio. Ali fiz o ginásio e o curso
Normal onde me formei como professora. Tive aulas com professores da família
Dutra: Desenho, música.
Nessa época Erotides de Campos
lecionava na Escola Normal?
Lecionava, embora eu nunca tenha
sido sua aluna o conheci muito por que ele era muito amigo do meu pai. Meu pai
também era musicista. Ele tem coisas lindas. Era seresteiro, aceitava muito as
letras que os amigos dele faziam e pediam para ele colocar a música, então ele
entrava muito na dinâmica daquela letra.
O pai da senhora frequentava a
casa de Erotides de Campos?
Frequentava!
Qual era o instrumento musical
que o pai da senhora tocava?
Meu pai tocava flauta. Estudava
até de madrugada, dormíamos ao som da flauta dele.
Com isso despertou na senhora a
vontade de tocar algum instrumento?
Desde oito a nove anos eu tocava
piano. Estudei piano, até receber o diploma do Conservatório Musical de São
Paulo. Depois estudei os cursos adjacentes que eles chamavam de Canto Orfeônico
Eram cursos que nos preparavam para sermos professores de música. no ensino
médio. Estudei na Escola do Maestro Julião. Estudei piano com Fritz Jank No
exame do Conservatório eu toquei uma música de autoria do meu pai chamada “
Meditação” que foi muito aplaudida. Uma valsa muito bonita.
O que significa a música para a
senhora?
Eu nunca pensei
nisso! Para mim significa a harmonia do Universo. A coletividade dos seres do
Universo. Que faz esse Universo caminhar, crescer, produzir, Produzir artes,
produzir o belo, o bom, a música reúne tudo isso, uma imensa produção dos sons
que ela pode criar. A minha mãe na juventude dela tocou piano e a minha irmã
Ângela tocou piano em sua infância. Sou formada como professora pela Escola
Normal e também como professora de música e como musicista, pianista.
Quando a senhora concluiu a Escola
Normal qual foi a próxima etapa?
Continuei a estudar música, em
São Paulo. Eu viajava, não todos os dias, porque o curso era dado às vezes por
semanas, depois eram feitas as provas.
A senhora ia como para São Paulo?
Ia de trem, a Companhia Paulista
de Estradas de Ferro era muito boa! Para as aulas de piano com o Fritz Jank que
morava nas proximidades do Cemitério da Consolação, no bairro Pacaembu, eu ia
sozinha. Para os cursos de formação musical, com o Maestro Julião, a minha mãe
ia também porque ela fez o curso.
Em seguida o que a senhora fez?
Eu tinha que decidir o futuro da
minha vida. Através de muitas experiências, muitos contatos, de visitar muitos
setores da sociedade e refletir eu resolvi dedicar a minha vida a um trabalho
popular. Comecei uma série de estudos, especialmente a Educação Popular.
A senhora ingressou em uma
instituição religiosa?
Essa organização religiosa tem o
nome de congregação, é a Congregação de Nossa Senhora – Cônegas de Santo
Agostinho,é uma congregação agostiniana, fundada a mais de 400 anos. É muito
antiga, então o nome também é antigo, a sede no Brasil é em São Paulo, a sede
internacional é em Roma, mas trabalhamos muito mais em Paris.
Quais idiomas a senhora fala?
Falo o português, francês e
espanhol. Não estudei inglês, quando comecei a estudar inglês em Piracicaba a
minha irmã faleceu, ai eu parei. Nunca tive a necessidade explicita do inglês,
na Congregação todos pelo menos entendem, lê um pouco ou fala mesmo o francês.
Após concluir a universidade trabalhei no setor internacional da Congregação
Em qual universidade a senhora
estudou?
Primeiro morei por dois anos em
São Paulo, no bairro Pompéia, depois em Perdizes. Estudei Letras, na Pontifícia
Universidade Católica de Porto Alegre. Uma universidade católica, que era
conduzida pelos Irmãos Maristas. Morei seis anos em Porto Alegre, logo após ter
ingressado na Congregação. Lá eu estudava e dava aulas. Fui lecionar em um
colégio bom, novo, em uma região nova de Porto Alegre, adiante um pouco de
Viamão.
Nesse período de permanência em
Porto Alegre a senhora adquiriu algum habito típico gaucho, como tomar
chimarrão?
Não chegou a ser habito, mas
posso dizer que gostei demais de Porto Alegre, assim como gostei muito do
contato com as minhas companheiras de lá, com as quais até hoje tenho uma
amizade muito boa. Apreciei muito a força desse povo, a autonomia que eles têm
a força de produzir e amar cultura. Valorizar sua cultura. Eles preservam e
apreciam sua cultura, produzem muita cultura, eles crescem. Eles afinaram a
intelectualidade. Agora é mais direta, mais simples, mais orgânica.
A tão decantada “globalização”
faz com que muitos percam sua identidade?
Isso ai, agora acho que tem que
voltar para outra ponta. Depende da educação que as pessoas recebem ou não
recebem. Depende da educação que penetra e que transforma, ou da educação que
fica na superfície. Que passa e se esquece. A educação do berço está junto. Toda
educação da vida fortalece a educação do berço. Ou então nos leva a ignorar. Procurar
outros destinos.
Como educadora, em sua opinião, a
aprovação quase compulsória de um aluno que não reúne o mínimo de conhecimentos
básicos não é prejudicial ao aluno?
A meu ver a educação é muito
institucionalizada. Quanto mais institucionalizada mais ela foge dos valores
atuais. Mais ela entra nos esquemas propostos desde o passado. Penso que a
educação tem que partir da experiência, da vida, dos valores. A educação não
pode partir da instituição senão será repetitiva. E ela não pode ser
repetitiva, tem que ser criativa.
A senhora acredita na formação do
caráter do indivíduo?
Acredito! Senão não se forma
ninguém! A educação é a formação do caráter pessoal e coletivo. A minha
Congregação é educadora. Tem como trabalho nesse grupo a educação. Essa
reflexão sobre educação é a proposta de processos criativos e educativos.
Cada instituição tem um lema,
qual é o lema da Congregação a qual a senhora pertence?
O lema vem de quem fundou há 400
anos. Nós seguimos duas frases. Um delas é: “ Bem à todos, mal à ninguém.” Essa
é uma frase do início da Congregação. A outra frase é pensando um pouquinho nos
valores religiosos::“ Faze-o crescer”.
Quem fundou a Congregação?
Foi um vigário, de
paróquia. Ele era cônego de Santo Agostinho. Era uma congregação masculina.
Isso em um condado da França. Ele era um visionário, tem muitas cartas,
completamente fora do estilo da época. Essas duas frases não dele, são da
fundadora que fundou junto com ele, as Canonisas ou
Cônegas de Santo Agostinho (Canonicæ Sancti Augustini) (CSA), fundada,
em Lorena, França, em 1597, pela beata Alice
Leclerc sob orientação do Padre Pierre
Fourrier, com a finalidade de dedicar à
educação das jovens. Inicialmente, a congregação tinha o nome de Cónegas de
Nossa Senhora (Chanoinesses de Notre-Dame), mas em 1932 foi reformada, com o nome de Cónegas
de Santo Agostinho.
A senhora de
Porto Alegre foi para qual cidade?
Após seis anos em Porto Alegre vim para São Paulo, a Rua
Caio Prado. Ali estava nosso colégio, que foi vendido, o Colégio Des Oiseaux, demolido em 1974.e até hoje não fizeram nada, é um
estacionamento. Era um colégio lindíssimo, tinha um palacete na entrada. Tinha
uma capela lindíssima. Tínhamos alguns momentos guardados por 400 anos. Um
desses momentos era que nós rezávamos o ofício da igreja que é o que os padres
rezam até hoje, o breviário. Rezávamos inteiramente. Era sete vezes na capela
durante o dia. Para poder cumprir esse programa para cada dia. Essa capela era
muito bonita, tinha uns lugares que chamamos de estalas, eram cadeiras
especiais que davam toda a volta em todo o correr da capela. Quando tínhamos
hóspedes, pessoas que também gostavam de rezar eles entravam também nas
estalas.
Quantas irmãs residiam a Rua Caio Prado?
Quando eu entrei tinha umas oitenta.
A senhora permaneceu lá até que ano?
Fiquei no Colégio Des Oiseaux, que é o Colégio das Cônegas de Santo Agostinho, fazendo
estudos por uns três anos, aprofundando os conhecimentos teológicos. Entrando
em um campo em que teria que trabalhar com tudo, mais uma luz de fé. Fiz um
curso de teologia, fiz um curso de experiência de missão, foi na época do
Concilio Vaticano II, por volta de 1962 a 1963. Depois disso trabalhei um pouco
com as jovens que estavam chegando à Congregação. .Ao mesmo tempo pedi para ir
para o Nordeste.
O que a levou a fazer esse pedido?
Está na base da minha escolha de vida. Resolvi
dedicar a minha vida a essa população. Naquele tempo tínhamos apenas uma casa
em Recife. Quando cheguei ao Nordeste a coisa cresceu, criaram-se outros
grupos. Quando eu vim para ficar havia o colégio em Recife. Tínhamos um
programa que atendia tanto as alunas filhas
de usineiros, mas também tinha escolas para pessoas que não podiam
pagar. Eu cheguei ao Nordeste em 1970.
Cheguei a Recife, era uma comunidade com umas 18 a 20 irmãs. Havia varias
sulistas, paulistas. O convento e o colégio lá foram criados pelas nossas irmãs
da Alemanha. Nós de São Paulo fomos criadas pelas belgas. O que aconteceu é que
quando anexaram os condados na Europa a Congregação foi perseguida e as que
conseguiram fugiram para Portugal. Foi uma perseguição política Nesse
desmembramento e saída para outro país, se formaram vários mosteiros separados.
Como se formaram núcleos diferentes, depois esses núcleos foram se reunindo em
uma modernidade mais avançada. A Congregação assumiu características do pais
onde estavam sediadas, Alemanha, França, Bélgica. Até que decidiram ir em
missões em outros continentes, para o Brasil inicialmente vieram as belgas que
se instalaram em São Paulo.Depois as alemãs vieram para o Nordeste. Os dois
grupos mantiveram a comunicação entre si, porém com muitas coisas diferentes
entre elas. Com tradições diferentes. Após ficar em São Paulo estudando, passei
dois anos na Bélgica em um grande colégio da Congregação. Era próxima a
Bruxelas, eu ia todos os dias até Bruxelas para estudar. Isso foi em 1966, de
lá fui para Paris várias vezes, seguíamos cursos interessantes.
Deixar a Europa
e ir para o Nordeste do Brasil foi uma decisão de coragem?
Quando eu morei
em São Paulo viajei muito com as irmãs que eram professoras do nosso colégio em
São Paulo, elas levavam grupos de alunas para conhecer o Nordeste. Talvez o meu
primeiro impacto foi nessa viagem que fiz com as alunas, nós ficamos hospedadas
com as irmãs que eram alemãs, mas que eram da nossa Congregação levantávamos as
cinco horas da manhã com as noviças para ver os jangadeiros partirem na busca
de peixe as famílias na praia, as mulheres rezando para ter bom tempo, todos os
cantos de Dorival Caymi. Tudo isso era uma coisa muito bonita. A questão da
vida, da sobrevivência. Isso me tocou
muito, até hoje me lembro. Íamos também para ver os jangadeiros que chegavam da
noite, com os peixes, vendiam quase tudo ali. Eu tive a sorte de visitar
bastante o Nordeste, não só Recife. A nossa educação é muito sólida. Uma
das irmãs que veio liderando essa
excursão, é introdutora no Brasil dos métodos ativos em educação, que já abre
pistas para Paulo Freire, para toda essa gente que depois fez toda uma
metodologia para educação popular. A
nossa irmã é que trouxe de cursos que ela fez na Europa com um padre chamado
Faure era o grande idealizador desses métodos mais ativos. Isso nós levávamos para todos os cantos.
A senhora está morando no
Nordeste do Brasil desde que ano?
Desde 1970, portanto são 46 anos.
A sua permanência por tanto tempo permitiu acompanhar o desenvolvimento de
várias gerações, muitas mudanças.
O que mudou no Nordeste nesse
período de quase meio século?
Morei 14 anos no sertão, havia o
sistema de coronelismo, inclusive com a anuência de uma autoridade eclesiástica
em conluio com os coronéis, para manter os “status quo” (no mesmo estado). Fui
expulsa do sertão pelos coronéis. Era um trabalho que incomodava o sistema
político e social deles, Fomos obrigadas a sair de lá, se permanecêssemos os
pobres seriam sacrificados, naquele tempo havia o processo das listas das
pessoas que seriam abatidas ou sacrificadas, pessoas que incomodavam a política
deles. O meu nome estava em duas dessas listas. Quem nos contava era o povo
trabalhador. Nós tínhamos muito contato com os sítios, saíamos muito para os
sítios, e isso incomodava demais porque as cidades eram pequenas diante dos
sítios, era o curral humano dos coronéis. Nós ficamos sete anos no Estado de
Pernambuco e sete anos no Estado de Alagoas. Era um lugar onde Pernambuco e
Alagoas eram limítrofes. Não podíamos manter grandes escolas, tínhamos que
manter pequenas escolas. Em periferia, no interior, era esse o publico que
precisava de nós.
E as filhas dos fazendeiros,
frequentavam as escolas?
Elas estavam nos grandes colégios
de Recife. Quando cheguei ao Nordeste fui eleita no ano seguinte fui eleita
Regional no Nordeste, fiquei coordenadora nessa região. Meu trabalho era mais
de animação dos pequenos grupos das irmãs. Nossa mentalidade naquele tempo
dizia que era bom ir conviver mais com o povo e não ficar em colégio. Uma
pessoa que teve muita influência em nossa decisão foi Dom Helder Câmara. Uma
senhora que trabalhava para ele tinha uma filha que estudava conosco no colégio de Recife, e Dom Helder ia lá às
vezes por causa dessa menina. Um dia ele me disse: “É muito bom o colégio, mas
tem muitos colégios religiosos aqui em Recife, as Damas Cristãs, os Maristas, os
Dominicanos, muita gente trabalhando na formação do povo que era a elite da
sociedade, seria tão bom se vocês descobrissem um valor em sair deste ambiente,
não para rejeitar, mas para fazer uma coisa diferente, ir um pouco para o
interior, ver o que se passa por ai, ver a educação como é que anda por aí
criar um sistema de educação popular”..
Foi ele quem deu o primeiro empurrão. E daí começamos a discutir isso na
comunidade das irmãs. Essa discussão nos levou a fechar o colégio de Recife. O
colégio era bom, não tinha problemas financeiros, professores bons, mas a coisa
caminhou tão forte na linha missionária que em 1974 resolvemos fechar o
colégio. Foi uma zoada em Recife. Ninguém entendia. Tivemos que explicar, fazer
um processo bem detalhado, com os pais dos alunos, professores, amigos, com
pessoas que se juntavam a nós no colégio, e todo o mundo ajudou a fechar esse
colégio. Chamei de São Paulo duas irmãs: uma para cuidar das finanças e a outra
para ser a diretora do colégio nesse momento de fechamento. Organizamos-nos com
elas e fechamos o colégio, Daí que eu fui para o sertão.
Para qual localidade do sertão a
senhora foi?
Fui para Itacaratu, Pernambuco, é
um município aonde tem muitos indígenas, os Pankararus, ali nós não criamos a
primeira comunidade nossa, descemos a serra, embaixo tem uma vila que pertence
a Itacaratu, nessa vila nos estabelecemos, chama-se Caraibeiras. O povo da
região é artesão de redes de dormir, ou cobertas e cama, tudo feito no tear. Naquele
tempo eram dependentes profundamente dos donos dos fios, que recebiam as redes
prontas, quem fabricava rede guardava tudo, o fiozinho que sobrava, a lãzinha
que saia da tecelagem, quando eles entregavam as redes para quem deu o fio,
tinham que colocar junto tudo que tinha saído dos fios. Se desse um peso
diferente os tecedores teriam que pagar. Era um cuidado para não deixar desviar
nada. Se levassem 50 quilos de fio e recebessem de volta 45 quilos, os
tecedores tinham que pagar cinco quilos de fio. Nós trabalhamos muito com esse
pessoal do artesanato.
Qual era a alimentação básica deles?
Macaxeira (mandioca), comem muito
inhame, muito milho, carne de bode, ovelha e também boi. Íamos a feira, eles
matavam os bichinhos e vendiam o fígado quente. A matança dos bois não dá nem
para pensar. Nos insurgimos muito contra essas coisas, como dependia dos homens
que viam de longe para fazer essas coisas as nossas preces não ajudavam muito.
Comiam muito feijão, que é o que eles plantam, além de comerem macarrão e
bolacha. Morava conosco uma irmã francesa, que até hoje mora comigo, a Irmã Genevieve
Remy ela ia comprar pão pela manhã, era bem jovem, tinha vinte e poucos anos,
todo mundo a chama de Dona Gê. O padeiro dizia: “ Dona Gê! O pãozinho francês
está quente!” Ela chegava em casa com aquele pão feito com água de barreiro.
Marrom. Eles não tinham consciência do que seria a manifestação de bactérias.
Essa irmã é enfermeira, ficou nove anos nessa vila, fez um trabalho maravilhoso
de educação, saúde pública, sanitária, ela formou pessoas. Trabalhou muito a
saúde alternativa, os remédios alternativos com o pessoal da roça. Quando
saímos de lá tinha muita coisa nascendo e o povo assumindo. A gente só trabalha
se o povo assumir. Não fazemos no lugar do povo. Há uns dez anos mais ou menos.
Voltamos para lá, e encontramos as pessoas com quem trabalhamos, que já são mãe
de famílias, e essas pessoas que ela formou, são todas que ocupam os cargos no
posto de saúde de lá, e ganham para isso.
Essa consciência, motivada por uma vocação religiosa não
deveria ser uma consciência nacional?
Precisaria ser! Sinto-me na
obrigação de dizer sobre as mudanças de dez anos atrás para hoje. Obviamente
que tudo não é ótimo. O Estado da Paraíba é o estado campeão da violência
contra as mulheres. É um sentimento vivo da tradição do povo machista, como
acontece em muitos lugares do Brasil. O sentimento vivo das classes sociais
diferenciadas. O Nordeste é muito popular e pobre financeiramente. Por outro
lado no Nordeste existe uma elite. Os ricos, que administram, que sabem tudo,
que mostram os caminhos, isso é uma elite intelectual, financeira, social,
amoral e não ética. Tem uma elite que vive isso muito forte, esse sentimento
vivo sustenta essa discriminação. É uma confirmação da classe dominante que vem
do passado, do tempo das capitanias hereditárias, dos ricos de Portugal.
Há a influencia da colonização holandesa?
Os holandeses eram poderosos, tem o
poder e tem a riqueza, as duas coisas às vezes coincidem, mas também podem não
coincidirem. A pessoa pode ser poderosa sem ter riqueza. A classe de elite do
Nordeste é poderosa e construiu a riqueza do Nordeste. Os pobres do Nordeste
até chegar um Lula no governo não tinham nada. Os que subiam na política,
deputados, senadores, vinham como representantes da região em Brasília, eles
maltratavam o povo. De Caraibeiras fomos morar em Inhapi, próximo a Canapi,
terra da Ex-mulher do Collor, a Roseane, seu pai é um dos coronéis. Tem mais
dois irmãos dela, um que fica em Inhapi e outro que fica em Mata Grande. São as
três principais cidades da região. Os irmãos da Roseane são quem dominam a
região, eles que nos mandaram embora. Esse espírito de posse que eles têm, a
terra é deles, tudo é deles, o povo é deles, os votos são deles O Nordeste não
digo que seja feudal, mas é agrário. É uma região agrícola do Brasil.
E a seca?
A seca é um fenômeno, que atrapalha
que não é agradável.
Pode ser resolvido esse problema?
Não será resolvido.
Israel conseguiu resolver!
Aqui para o Brasil, pelo menos
Roberto Malvezzi pensa assim, é um problema que temos que conviver. O que o
Governo da Presidente Dilma fez? Milhares de cisternas. Hoje não falta água
para aquele povo. Caso não tenham água na cisterna por ficar dois ou três meses
sem chuva, o Governo Federal manda carros pipa enchendo de água a cisterna
deles. Os governantes dos Estados do Nordeste tem a intenção de abafar isso:
não parte deles e ao mesmo tempo tira o poder que eles tem. Não generalizo e
nem posso generalizar, há regiões que são atendidas a contento outras ainda
não, há um impedimento na ação do governo central.
O fato de pode mostrar que é possível, que é viável já não é
um grande avanço?
A Dilma proporcionou a aquisição de
máquinas para eles trabalharem no campo, motos para eles irem trabalhar geralmente
em locais distantes, essas motos permite que eles tragam o que puderem da
produção, inclusive água. As mulheres andavam até seis quilômetros com duas
latas de água. A tarde voltavam a pé mais seis quilômetros para pegar água para
a noite. Eu sei porque vivi 14 anos no campo, e até então era tudo movido por
tração animal e tração braçal. Fui muito para a roça com eles, aquelas roças
imensas. Que não eram deles e sim dos senhores da terra. Isso tem a ver com
aquelas listas de nomes de pessoas. Essas pessoas trabalham como “alugados” aos
senhores da terra, eles vão até a casa do proprietário da terra para receberem
o salariozinho deles. Escutavam toda a conversa e nos contavam. Nós mantemos o
contato com elas até hoje, elas nos escrevem ou telefonam, Dizem: “Precisam ver
o campo como está! As hortaliças como estão!”. Isso é mérito da Lula e da
Dilma. Nenhum político fez isso antes. Nem os políticos nordestinos.
E o Movimento dos Sem Terra – MST?
Eu tive contato mais seguido quando
o movimento começou na área, isso a mais de vinte anos, agora não sei como
estão na área. Eles estavam na área há vinte anos como os donos da verdade,
tínhamos pessoas das comunidades de base da igreja, eram boas pessoas,
trabalhavam bastante, tinham casas de farinha. Aí começaram a dar cursos e a
fazer uma análise histórica da igreja, a meter o pau na igreja. A Igreja não é
santa não, mas precisamos entender o tempo, a época, porque agiram assim. Que
mentalidades tinham.
A seu ver o MST saiu do seu objetivo principal?
Acho que mais pela falta de pessoas
que orientassem, o movimento crescia e tinham poucos lideres. bem situados. Lá
no sertão eles ficavam sozinhos e nós procurávamos ajudar. Hoje acho que
amadureceram, não estou falando da região, estou me referindo ao movimento.
É inegável que existe uma rejeição ao MST por parte da
população em decorrência das atitudes de alguns líderes.
É um movimento que cuidando de si
está cuidando dos outros. É mais do que sabido que eles têm muita gente hoje no
Brasil. São muitas famílias com muitas crianças, eles instituíram escolas com
métodos ativos, dinâmicos, usam muito a metodologia do Paulo Freire. Eles
cuidam deles, essas crianças estão crescendo, já têm jovens cursando as
universidades. Entre as faculdades cridas recentemente está
nascendo uma de medicina para cuidar dos membros do MST. Eles não são
egocentristas, são missionários.
Pode existir correntes de pensamentos divergentes
dentro do MST?
Isso pode existir. O movimento é
muito grande, alguns não permanecem. Devem produzir o trabalho exigido pelo
MST. São conduzidos, tem os animadores, tem que trabalhar, não podem apenas ir
e desfrutar tem que trabalhar para poder usufruir.
E a Amazônia como a senhora vê?
Conheço pouquíssimo a Amazônia.
Acredito que o perigo de perdermos a Amazônia já foi mais forte. Acredito que
exista muito preconceito, são criados pelos que não querem perder nada, então
eles atacam E há uma tendência dos preconceitos se popularizarem. A nossa
organização tem uma unidade na Amazônia, sendo que uma das integrantes é quase
doutora em Engenharia Florestal. Temos outras irmãs que dirigem o grupo, vão
para congressos, elas são ótimas. Estão abrindo uma casa na fronteira da
Bolívia, Peru e Acre. São quase todas descendentes de indígenas. Elas conhecem
a vida indígena. Estive lá há dois anos, elas tiveram uma reunião entre elas,
eu participei, elas puxaram muita coisa de mim, tive que dizer o que pensava e
também o que eu perguntava, elas respondiam, eu disse o que pensava, o que eu
via, dentro do trabalho delas que não é só social é também político.
A senhora está morando no Nordeste do Brasil desde que ano?
Desde 1970, portanto são 46 anos.
A sua permanência por tanto tempo permitiu acompanhar o desenvolvimento de
várias gerações, muitas mudanças.
O que mudou no Nordeste nesse
período de quase meio século?
Morei 14 anos no sertão, havia o
sistema de coronelismo, inclusive com a anuência de uma autoridade eclesiástica
em conluio com os coronéis, para manter os “status quo” (no mesmo estado). Fui
expulsa do sertão pelos coronéis. Era um trabalho que incomodava o sistema
político e social deles, Tivemos que sair de lá, se permanecêssemos os pobres
seriam sacrificados, naquele tempo havia o processo das listas das pessoas que
seriam abatidas ou sacrificadas. Entre as faculdades cridas recentemente está
nascendo uma de medicina para cuidar dos membros do MST. Eles não são
egocentristas, são missionários.
Com relação aos medicamentos
naturais, obtidos das plantas qual é a impressão da senhora?
Eles estudam muito as plantas,
são doutores em plantas e efeitos. Sabem muito sobre o assunto, fazem misturas,
há remédios feitos por eles que são preciosos. É uma grande riqueza, abandonada
de um lado e explorada de outro lado. Os norte-americanos, japoneses, já vieram
explorar muito as patentes. Houve um momento em que isso esteve em perigo.