segunda-feira, março 14, 2016

CECÍLIA SODERO POUSA

PROGRAMA PIRACICABA HISTÓRIAS E MEMÓRIAS
JOÃO UMBERTO NASSIF
Jornalista e Radialista
joaonassif@gmail.com
Sábado 27 de fevereiro de 2015.
Entrevista: Publicada aos sábados no caderno de domingo da Tribuna Piracicabana
As entrevistas também podem ser acessadas através dos seguintes endereços eletrônicos:
http://blognassif.blogspot.com/
http://www.teleresponde.com.br/
ENTREVISTADA: CECÍLIA SODERO POUSA

A religiosa Irmã Cecília Sodero Pousa nasceu em Piracicaba a 31 de dezembro de 1931 a Rua do Rosário, nas proximidades do Grupo Escolar Moraes Barros.
A que distância do Grupo Moraes Barros ficava a residência da família da senhora?
Fica a apenas duas quadras, no sentido centro bairro. Era uma rua por onde o bonde passava, Dizem que nasci assim que o bonde passou, às oito horas e vinte minutos da noite. Sou filha de Orlandina Sodero Pousa e José Pousa de Toledo, ambos eram professores. Papai lecionava no bairro Pau Queimado, ele não saiu de lá por sua própria opção, ele queria lecionar no meio dos trabalhadores, agricultores.
Qual era o meio de transporte que ele utilizava para ir até a escola?
Usava seu próprio carro, sendo que levava também outras professoras.
A senhora lembra-se que modelo de carro que ele utilizava?
Sei que em certo momento ele utilizava uma “baratinha” azul. Eram veículos da época.
A senhora teve irmãos?
Tive uma irmã, Ângela Pousa de Coimbra casada com Plauto Lapa Coimbra, filho do Sr. Lamartine Teixeira Coimbra, que era Diretor do Instituto de Educação Sud Mennucci  O Plauto era sociólogo e advogado, trabalhou muito na área jurídica em Piracicaba. Isso na década de 50. A minha irmã era professora, ocupava cargos de orientação de ensino.
A senhora começou seus estudos em qual escola?
Foi no Grupo Escolar Moraes Barros. Minha primeira professora foi Dona Elisa Magalhães, ela deu aulas nos meus quatro primeiros anos. Conclui o primário e fui prestar exame no Instituto de Educação Sud Mennucci para entrar no ginásio. Ali fiz o ginásio e o curso Normal onde me formei como professora. Tive aulas com professores da família Dutra: Desenho, música.
Nessa época Erotides de Campos lecionava na Escola Normal?
Lecionava, embora eu nunca tenha sido sua aluna o conheci muito por que ele era muito amigo do meu pai. Meu pai também era musicista. Ele tem coisas lindas. Era seresteiro, aceitava muito as letras que os amigos dele faziam e pediam para ele colocar a música, então ele entrava muito na dinâmica daquela letra.
O pai da senhora frequentava a casa de Erotides de Campos?
Frequentava!
Qual era o instrumento musical que o pai da senhora tocava?
Meu pai tocava flauta. Estudava até de madrugada, dormíamos ao som da flauta dele.
Com isso despertou na senhora a vontade de tocar algum instrumento?
Desde oito a nove anos eu tocava piano. Estudei piano, até receber o diploma do Conservatório Musical de São Paulo. Depois estudei os cursos adjacentes que eles chamavam de Canto Orfeônico Eram cursos que nos preparavam para sermos professores de música. no ensino médio. Estudei na Escola do Maestro Julião. Estudei  piano com Fritz Jank No exame do Conservatório eu toquei uma música de autoria do meu pai chamada “ Meditação” que foi muito aplaudida. Uma valsa muito bonita.
O que significa a música para a senhora?
Eu nunca pensei nisso! Para mim significa a harmonia do Universo. A coletividade dos seres do Universo. Que faz esse Universo caminhar, crescer, produzir, Produzir artes, produzir o belo, o bom, a música reúne tudo isso, uma imensa produção dos sons que ela pode criar. A minha mãe na juventude dela tocou piano e a minha irmã Ângela tocou piano em sua infância. Sou formada como professora pela Escola Normal e também como professora de música e como musicista, pianista.
Quando a senhora concluiu a Escola Normal qual foi a próxima etapa?
Continuei a estudar música, em São Paulo. Eu viajava, não todos os dias, porque o curso era dado às vezes por semanas, depois eram feitas as provas.
A senhora ia como para São Paulo?
Ia de trem, a Companhia Paulista de Estradas de Ferro era muito boa! Para as aulas de piano com o Fritz Jank que morava nas proximidades do Cemitério da Consolação, no bairro Pacaembu, eu ia sozinha. Para os cursos de formação musical, com o Maestro Julião, a minha mãe ia também porque ela fez o curso.
Em seguida o que a senhora fez?
Eu tinha que decidir o futuro da minha vida. Através de muitas experiências, muitos contatos, de visitar muitos setores da sociedade e refletir eu resolvi dedicar a minha vida a um trabalho popular. Comecei uma série de estudos, especialmente a Educação Popular.
A senhora ingressou em uma instituição religiosa?
Essa organização religiosa tem o nome de congregação, é a Congregação de Nossa Senhora – Cônegas de Santo Agostinho,é uma congregação agostiniana, fundada a mais de 400 anos. É muito antiga, então o nome também é antigo, a sede no Brasil é em São Paulo, a sede internacional é em Roma, mas trabalhamos muito mais em Paris.
Quais idiomas a senhora fala?
Falo o português, francês e espanhol. Não estudei inglês, quando comecei a estudar inglês em Piracicaba a minha irmã faleceu, ai eu parei. Nunca tive a necessidade explicita do inglês, na Congregação todos pelo menos entendem, lê um pouco ou fala mesmo o francês. Após concluir a universidade trabalhei no setor internacional da Congregação
Em qual universidade a senhora estudou?
Primeiro morei por dois anos em São Paulo, no bairro Pompéia, depois em Perdizes. Estudei Letras, na Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre. Uma universidade católica, que era conduzida pelos Irmãos Maristas. Morei seis anos em Porto Alegre, logo após ter ingressado na Congregação. Lá eu estudava e dava aulas. Fui lecionar em um colégio bom, novo, em uma região nova de Porto Alegre, adiante um pouco de Viamão.
Nesse período de permanência em Porto Alegre a senhora adquiriu algum habito típico gaucho, como tomar chimarrão?
Não chegou a ser habito, mas posso dizer que gostei demais de Porto Alegre, assim como gostei muito do contato com as minhas companheiras de lá, com as quais até hoje tenho uma amizade muito boa. Apreciei muito a força desse povo, a autonomia que eles têm a força de produzir e amar cultura. Valorizar sua cultura. Eles preservam e apreciam sua cultura, produzem muita cultura, eles crescem. Eles afinaram a intelectualidade. Agora é mais direta, mais simples, mais orgânica.
A tão decantada “globalização” faz com que muitos percam sua identidade?
Isso ai, agora acho que tem que voltar para outra ponta. Depende da educação que as pessoas recebem ou não recebem. Depende da educação que penetra e que transforma, ou da educação que fica na superfície. Que passa e se esquece. A educação do berço está junto. Toda educação da vida fortalece a educação do berço. Ou então nos leva a ignorar. Procurar outros destinos.
Como educadora, em sua opinião, a aprovação quase compulsória de um aluno que não reúne o mínimo de conhecimentos básicos não é prejudicial ao aluno?
A meu ver a educação é muito institucionalizada. Quanto mais institucionalizada mais ela foge dos valores atuais. Mais ela entra nos esquemas propostos desde o passado. Penso que a educação tem que partir da experiência, da vida, dos valores. A educação não pode partir da instituição senão será repetitiva. E ela não pode ser repetitiva, tem que ser criativa.
A senhora acredita na formação do caráter do indivíduo?
Acredito! Senão não se forma ninguém! A educação é a formação do caráter pessoal e coletivo. A minha Congregação é educadora. Tem como trabalho nesse grupo a educação. Essa reflexão sobre educação é a proposta de processos criativos e educativos.
Cada instituição tem um lema, qual é o lema da Congregação a qual a senhora pertence?
O lema vem de quem fundou há 400 anos. Nós seguimos duas frases. Um delas é: “ Bem à todos, mal à ninguém.” Essa é uma frase do início da Congregação. A outra frase é pensando um pouquinho nos valores religiosos::“ Faze-o crescer”.
Quem fundou a Congregação?
Foi um vigário, de paróquia. Ele era cônego de Santo Agostinho. Era uma congregação masculina. Isso em um condado da França. Ele era um visionário, tem muitas cartas, completamente fora do estilo da época. Essas duas frases não dele, são da fundadora que fundou junto com ele, as Canonisas ou Cônegas de Santo Agostinho (Canonicæ Sancti Augustini) (CSA), fundada, em Lorena, França, em 1597, pela beata Alice Leclerc sob orientação do Padre Pierre Fourrier, com a finalidade de dedicar à educação das jovens. Inicialmente, a congregação tinha o nome de Cónegas de Nossa Senhora (Chanoinesses de Notre-Dame), mas em 1932 foi reformada, com o nome de Cónegas de Santo Agostinho.
A senhora de Porto Alegre foi para qual cidade?
Após seis anos em Porto Alegre vim para São Paulo, a Rua Caio Prado. Ali estava nosso colégio, que foi vendido, o Colégio Des Oiseaux, demolido em 1974.e até hoje não fizeram nada, é um estacionamento. Era um colégio lindíssimo, tinha um palacete na entrada. Tinha uma capela lindíssima. Tínhamos alguns momentos guardados por 400 anos. Um desses momentos era que nós rezávamos o ofício da igreja que é o que os padres rezam até hoje, o breviário. Rezávamos inteiramente. Era sete vezes na capela durante o dia. Para poder cumprir esse programa para cada dia. Essa capela era muito bonita, tinha uns lugares que chamamos de estalas, eram cadeiras especiais que davam toda a volta em todo o correr da capela. Quando tínhamos hóspedes, pessoas que também gostavam de rezar eles entravam também nas estalas.
Quantas irmãs residiam a Rua Caio Prado?
Quando eu entrei tinha umas oitenta.
A senhora permaneceu lá até que ano?
Fiquei no Colégio Des Oiseaux, que é o Colégio das Cônegas de Santo Agostinho, fazendo estudos por uns três anos, aprofundando os conhecimentos teológicos. Entrando em um campo em que teria que trabalhar com tudo, mais uma luz de fé. Fiz um curso de teologia, fiz um curso de experiência de missão, foi na época do Concilio Vaticano II, por volta de 1962 a 1963. Depois disso trabalhei um pouco com as jovens que estavam chegando à Congregação. .Ao mesmo tempo pedi para ir para o Nordeste.
O que a levou a fazer esse pedido?
Está  na base da minha escolha de vida. Resolvi dedicar a minha vida a essa população. Naquele tempo tínhamos apenas uma casa em Recife. Quando cheguei ao Nordeste a coisa cresceu, criaram-se outros grupos. Quando eu vim para ficar havia o colégio em Recife. Tínhamos um programa que atendia tanto as alunas filhas  de usineiros, mas também tinha escolas para pessoas que não podiam pagar. Eu  cheguei ao Nordeste em 1970. Cheguei a Recife, era uma comunidade com umas 18 a 20 irmãs. Havia varias sulistas, paulistas. O convento e o colégio lá foram criados pelas nossas irmãs da Alemanha. Nós de São Paulo fomos criadas pelas belgas. O que aconteceu é que quando anexaram os condados na Europa a Congregação foi perseguida e as que conseguiram fugiram para Portugal. Foi uma perseguição política Nesse desmembramento e saída para outro país, se formaram vários mosteiros separados. Como se formaram núcleos diferentes, depois esses núcleos foram se reunindo em uma modernidade mais avançada. A Congregação assumiu características do pais onde estavam sediadas, Alemanha, França, Bélgica. Até que decidiram ir em missões em outros continentes, para o Brasil inicialmente vieram as belgas que se instalaram em São Paulo.Depois as alemãs vieram para o Nordeste. Os dois grupos mantiveram a comunicação entre si, porém com muitas coisas diferentes entre elas. Com tradições diferentes. Após ficar em São Paulo estudando, passei dois anos na Bélgica em um grande colégio da Congregação. Era próxima a Bruxelas, eu ia todos os dias até Bruxelas para estudar. Isso foi em 1966, de lá fui para Paris várias vezes, seguíamos cursos interessantes.
Deixar a Europa e ir para o Nordeste do Brasil foi uma decisão de coragem?

Quando eu morei em São Paulo viajei muito com as irmãs que eram professoras do nosso colégio em São Paulo, elas levavam grupos de alunas para conhecer o Nordeste. Talvez o meu primeiro impacto foi nessa viagem que fiz com as alunas, nós ficamos hospedadas com as irmãs que eram alemãs, mas que eram da nossa Congregação levantávamos as cinco horas da manhã com as noviças para ver os jangadeiros partirem na busca de peixe as famílias na praia, as mulheres rezando para ter bom tempo, todos os cantos de Dorival Caymi. Tudo isso era uma coisa muito bonita. A questão da vida, da sobrevivência.  Isso me tocou muito, até hoje me lembro. Íamos também para ver os jangadeiros que chegavam da noite, com os peixes, vendiam quase tudo ali. Eu tive a sorte de visitar bastante o Nordeste, não só Recife. A nossa educação é muito sólida. Uma das  irmãs que veio liderando essa excursão, é introdutora no Brasil dos métodos ativos em educação, que já abre pistas para Paulo Freire, para toda essa gente que depois fez toda uma metodologia para educação popular.  A nossa irmã é que trouxe de cursos que ela fez na Europa com um padre chamado Faure era o grande idealizador desses métodos mais ativos. Isso nós  levávamos para todos os cantos. 
A senhora está morando no Nordeste do Brasil desde que ano?
Desde 1970, portanto são 46 anos. A sua permanência por tanto tempo permitiu acompanhar o desenvolvimento de várias gerações, muitas mudanças.
O que mudou no Nordeste nesse período de quase meio século?
Morei 14 anos no sertão, havia o sistema de coronelismo, inclusive com a anuência de uma autoridade eclesiástica em conluio com os coronéis, para manter os “status quo” (no mesmo estado). Fui expulsa do sertão pelos coronéis. Era um trabalho que incomodava o sistema político e social deles, Fomos obrigadas a sair de lá, se permanecêssemos os pobres seriam sacrificados, naquele tempo havia o processo das listas das pessoas que seriam abatidas ou sacrificadas, pessoas que incomodavam a política deles. O meu nome estava em duas dessas listas. Quem nos contava era o povo trabalhador. Nós tínhamos muito contato com os sítios, saíamos muito para os sítios, e isso incomodava demais porque as cidades eram pequenas diante dos sítios, era o curral humano dos coronéis. Nós ficamos sete anos no Estado de Pernambuco e sete anos no Estado de Alagoas. Era um lugar onde Pernambuco e Alagoas eram limítrofes. Não podíamos manter grandes escolas, tínhamos que manter pequenas escolas. Em periferia, no interior, era esse o publico que precisava de nós.
E as filhas dos fazendeiros, frequentavam as escolas?
Elas estavam nos grandes colégios de Recife. Quando cheguei ao Nordeste fui eleita no ano seguinte fui eleita Regional no Nordeste, fiquei coordenadora nessa região. Meu trabalho era mais de animação dos pequenos grupos das irmãs. Nossa mentalidade naquele tempo dizia que era bom ir conviver mais com o povo e não ficar em colégio. Uma pessoa que teve muita influência em nossa decisão foi Dom Helder Câmara. Uma senhora que trabalhava para ele tinha uma filha que estudava conosco  no colégio de Recife, e Dom Helder ia lá às vezes por causa dessa menina. Um dia ele me disse: “É muito bom o colégio, mas tem muitos colégios religiosos aqui em Recife, as Damas Cristãs, os Maristas, os Dominicanos, muita gente trabalhando na formação do povo que era a elite da sociedade, seria tão bom se vocês descobrissem um valor em sair deste ambiente, não para rejeitar, mas para fazer uma coisa diferente, ir um pouco para o interior, ver o que se passa por ai, ver a educação como é que anda por aí criar um sistema de educação popular”..  Foi ele quem deu o primeiro empurrão. E daí começamos a discutir isso na comunidade das irmãs. Essa discussão nos levou a fechar o colégio de Recife. O colégio era bom, não tinha problemas financeiros, professores bons, mas a coisa caminhou tão forte na linha missionária que em 1974 resolvemos fechar o colégio. Foi uma zoada em Recife. Ninguém entendia. Tivemos que explicar, fazer um processo bem detalhado, com os pais dos alunos, professores, amigos, com pessoas que se juntavam a nós no colégio, e todo o mundo ajudou a fechar esse colégio. Chamei de São Paulo duas irmãs: uma para cuidar das finanças e a outra para ser a diretora do colégio nesse momento de fechamento. Organizamos-nos com elas e fechamos o colégio, Daí que eu fui para o sertão.
Para qual localidade do sertão a senhora foi?
Fui para Itacaratu, Pernambuco, é um município aonde tem muitos indígenas, os Pankararus, ali nós não criamos a primeira comunidade nossa, descemos a serra, embaixo tem uma vila que pertence a Itacaratu, nessa vila nos estabelecemos, chama-se Caraibeiras. O povo da região é artesão de redes de dormir, ou cobertas e cama, tudo feito no tear. Naquele tempo eram dependentes profundamente dos donos dos fios, que recebiam as redes prontas, quem fabricava rede guardava tudo, o fiozinho que sobrava, a lãzinha que saia da tecelagem, quando eles entregavam as redes para quem deu o fio, tinham que colocar junto tudo que tinha saído dos fios. Se desse um peso diferente os tecedores teriam que pagar. Era um cuidado para não deixar desviar nada. Se levassem 50 quilos de fio e recebessem de volta 45 quilos, os tecedores tinham que pagar cinco quilos de fio. Nós trabalhamos muito com esse pessoal do artesanato.
Qual era a alimentação básica deles?
Macaxeira (mandioca), comem muito inhame, muito milho, carne de bode, ovelha e também boi. Íamos a feira, eles matavam os bichinhos e vendiam o fígado quente. A matança dos bois não dá nem para pensar. Nos insurgimos muito contra essas coisas, como dependia dos homens que viam de longe para fazer essas coisas as nossas preces não ajudavam muito. Comiam muito feijão, que é o que eles plantam, além de comerem macarrão e bolacha. Morava conosco uma irmã francesa, que até hoje mora comigo, a Irmã Genevieve Remy ela ia comprar pão pela manhã, era bem jovem, tinha vinte e poucos anos, todo mundo a chama de Dona Gê. O padeiro dizia: “ Dona Gê! O pãozinho francês está quente!” Ela chegava em casa com aquele pão feito com água de barreiro. Marrom. Eles não tinham consciência do que seria a manifestação de bactérias. Essa irmã é enfermeira, ficou nove anos nessa vila, fez um trabalho maravilhoso de educação, saúde pública, sanitária, ela formou pessoas. Trabalhou muito a saúde alternativa, os remédios alternativos com o pessoal da roça. Quando saímos de lá tinha muita coisa nascendo e o povo assumindo. A gente só trabalha se o povo assumir. Não fazemos no lugar do povo. Há uns dez anos mais ou menos. Voltamos para lá, e encontramos as pessoas com quem trabalhamos, que já são mãe de famílias, e essas pessoas que ela formou, são todas que ocupam os cargos no posto de saúde de lá, e ganham para isso.
Essa consciência, motivada por uma vocação religiosa não deveria ser uma consciência nacional?
Precisaria ser! Sinto-me na obrigação de dizer sobre as mudanças de dez anos atrás para hoje. Obviamente que tudo não é ótimo. O Estado da Paraíba é o estado campeão da violência contra as mulheres. É um sentimento vivo da tradição do povo machista, como acontece em muitos lugares do Brasil. O sentimento vivo das classes sociais diferenciadas. O Nordeste é muito popular e pobre financeiramente. Por outro lado no Nordeste existe uma elite. Os ricos, que administram, que sabem tudo, que mostram os caminhos, isso é uma elite intelectual, financeira, social, amoral e não ética. Tem uma elite que vive isso muito forte, esse sentimento vivo sustenta essa discriminação. É uma confirmação da classe dominante que vem do passado, do tempo das capitanias hereditárias, dos ricos de Portugal.
Há a influencia da colonização holandesa?
Os holandeses eram poderosos, tem o poder e tem a riqueza, as duas coisas às vezes coincidem, mas também podem não coincidirem. A pessoa pode ser poderosa sem ter riqueza. A classe de elite do Nordeste é poderosa e construiu a riqueza do Nordeste. Os pobres do Nordeste até chegar um Lula no governo não tinham nada. Os que subiam na política, deputados, senadores, vinham como representantes da região em Brasília, eles maltratavam o povo. De Caraibeiras fomos morar em Inhapi, próximo a Canapi, terra da Ex-mulher do Collor, a Roseane, seu pai é um dos coronéis. Tem mais dois irmãos dela, um que fica em Inhapi e outro que fica em Mata Grande. São as três principais cidades da região. Os irmãos da Roseane são quem dominam a região, eles que nos mandaram embora. Esse espírito de posse que eles têm, a terra é deles, tudo é deles, o povo é deles, os votos são deles O Nordeste não digo que seja feudal, mas é agrário. É uma região agrícola do Brasil.
E a seca?
A seca é um fenômeno, que atrapalha que não é agradável.
Pode ser resolvido esse problema?
Não será resolvido.
Israel conseguiu resolver!
Aqui para o Brasil, pelo menos Roberto Malvezzi pensa assim, é um problema que temos que conviver. O que o Governo da Presidente Dilma fez? Milhares de cisternas. Hoje não falta água para aquele povo. Caso não tenham água na cisterna por ficar dois ou três meses sem chuva, o Governo Federal manda carros pipa enchendo de água a cisterna deles. Os governantes dos Estados do Nordeste tem a intenção de abafar isso: não parte deles e ao mesmo tempo tira o poder que eles tem. Não generalizo e nem posso generalizar, há regiões que são atendidas a contento outras ainda não, há um impedimento na ação do governo central.
O fato de pode mostrar que é possível, que é viável já não é um grande avanço?
A Dilma proporcionou a aquisição de máquinas para eles trabalharem no campo, motos para eles irem trabalhar geralmente em locais distantes, essas motos permite que eles tragam o que puderem da produção, inclusive água. As mulheres andavam até seis quilômetros com duas latas de água. A tarde voltavam a pé mais seis quilômetros para pegar água para a noite. Eu sei porque vivi 14 anos no campo, e até então era tudo movido por tração animal e tração braçal. Fui muito para a roça com eles, aquelas roças imensas. Que não eram deles e sim dos senhores da terra. Isso tem a ver com aquelas listas de nomes de pessoas. Essas pessoas trabalham como “alugados” aos senhores da terra, eles vão até a casa do proprietário da terra para receberem o salariozinho deles. Escutavam toda a conversa e nos contavam. Nós mantemos o contato com elas até hoje, elas nos escrevem ou telefonam, Dizem: “Precisam ver o campo como está! As hortaliças como estão!”. Isso é mérito da Lula e da Dilma. Nenhum político fez isso antes. Nem os políticos nordestinos.
E o Movimento dos Sem Terra – MST?
Eu tive contato mais seguido quando o movimento começou na área, isso a mais de vinte anos, agora não sei como estão na área. Eles estavam na área há vinte anos como os donos da verdade, tínhamos pessoas das comunidades de base da igreja, eram boas pessoas, trabalhavam bastante, tinham casas de farinha. Aí começaram a dar cursos e a fazer uma análise histórica da igreja, a meter o pau na igreja. A Igreja não é santa não, mas precisamos entender o tempo, a época, porque agiram assim. Que mentalidades tinham.
A seu ver o MST saiu do seu objetivo principal?
Acho que mais pela falta de pessoas que orientassem, o movimento crescia e tinham poucos lideres. bem situados. Lá no sertão eles ficavam sozinhos e nós procurávamos ajudar. Hoje acho que amadureceram, não estou falando da região, estou me referindo ao movimento.
É inegável que existe uma rejeição ao MST por parte da população em decorrência das atitudes de alguns líderes.
É um movimento que cuidando de si está cuidando dos outros. É mais do que sabido que eles têm muita gente hoje no Brasil. São muitas famílias com muitas crianças, eles instituíram escolas com métodos ativos, dinâmicos, usam muito a metodologia do Paulo Freire. Eles cuidam deles, essas crianças estão crescendo, já têm jovens cursando as universidades. Entre as faculdades cridas recentemente está nascendo uma de medicina para cuidar dos membros do MST. Eles não são egocentristas, são missionários.
Pode  existir correntes de pensamentos divergentes dentro do MST?
Isso pode existir. O movimento é muito grande, alguns não permanecem. Devem produzir o trabalho exigido pelo MST. São conduzidos, tem os animadores, tem que trabalhar, não podem apenas ir e desfrutar tem que trabalhar para poder usufruir.
E a Amazônia como a senhora vê?
Conheço pouquíssimo a Amazônia. Acredito que o perigo de perdermos a Amazônia já foi mais forte. Acredito que exista muito preconceito, são criados pelos que não querem perder nada, então eles atacam E há uma tendência dos preconceitos se popularizarem. A nossa organização tem uma unidade na Amazônia, sendo que uma das integrantes é quase doutora em Engenharia Florestal. Temos outras irmãs que dirigem o grupo, vão para congressos, elas são ótimas. Estão abrindo uma casa na fronteira da Bolívia, Peru e Acre. São quase todas descendentes de indígenas. Elas conhecem a vida indígena. Estive lá há dois anos, elas tiveram uma reunião entre elas, eu participei, elas puxaram muita coisa de mim, tive que dizer o que pensava e também o que eu perguntava, elas respondiam, eu disse o que pensava, o que eu via, dentro do trabalho delas que não é só social é também político. 
A senhora está morando no Nordeste do Brasil desde que ano?
Desde 1970, portanto são 46 anos. A sua permanência por tanto tempo permitiu acompanhar o desenvolvimento de várias gerações, muitas mudanças.
O que mudou no Nordeste nesse período de quase meio século?
Morei 14 anos no sertão, havia o sistema de coronelismo, inclusive com a anuência de uma autoridade eclesiástica em conluio com os coronéis, para manter os “status quo” (no mesmo estado). Fui expulsa do sertão pelos coronéis. Era um trabalho que incomodava o sistema político e social deles, Tivemos que sair de lá, se permanecêssemos os pobres seriam sacrificados, naquele tempo havia o processo das listas das pessoas que seriam abatidas ou sacrificadas. Entre as faculdades cridas recentemente está nascendo uma de medicina para cuidar dos membros do MST. Eles não são egocentristas, são missionários.
Com relação aos medicamentos naturais, obtidos das plantas qual é a impressão da senhora?
Eles estudam muito as plantas, são doutores em plantas e efeitos. Sabem muito sobre o assunto, fazem misturas, há remédios feitos por eles que são preciosos. É uma grande riqueza, abandonada de um lado e explorada de outro lado. Os norte-americanos, japoneses, já vieram explorar muito as patentes. Houve um momento em que isso esteve em perigo. 


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