domingo, outubro 22, 2017

CRAMI-MARIA HILMA DE OLIVEIRA GANZELLA e VIVIANE BERTONCELLO


PROGRAMA PIRACICABA HISTÓRIAS E MEMÓRIAS
JOÃO UMBERTO NASSIF
Jornalista e Radialista
joaonassif@gmail.com
Sábado 30 de setembro de 2017

Entrevista: Publicada aos sábados no caderno de domingo da Tribuna Piracicabana
As entrevistas também podem ser acessadas através dos seguintes endereços eletrônicos:

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ENTREVISTADA: MARIA HILMA DE OLIVEIRA GANZELLA e VIVIANE BERTONCELLO

(CRAMI- Centro Regional de Registros e Atenção aos Maus Tratos na Infância de Piracicaba)

 
        VIVIANE E MARIA HILMA



O Centro Regional de Registros e Atenção aos Maus Tratos na Infância de Piracicaba, também designado pela sigla CRAMI, para todos os efeitos legais, fundado em 30 de outubro de 1986, sendo que o primeiro CRAMI foi fundado em Campinas para atender aquela cidade. Foi criado a partir da observação de médicos da UNICAMP que constaram o fato de muitas crianças de 0 a 17 anos vinham a óbito por fratura de crânio, vitimas de violência. A partir dessa observação criou-se o CRAMI que se constitui como uma associação civil de direito privado, sem fins econômicos. Tem como finalidade executar ações de prevenção, programas, projetos ou serviços de proteção social especial, dirigidos às crianças e adolescentes em situações de vulnerabilidade, de riscos pessoais ou sociais, ou que se encontrem sob medida de proteção legal ou judicial, bem como aos seus responsáveis visando prevenção, proteção, tratamento, reabilitação e defesa dos interesses e direitos estabelecidos na Constituição Federal do Brasil e na Lei 8.069 de 1990- Estatuto da Criança e do Adolescente conforme artigo 2º do Estatuto da entidade. No desenvolvimento de suas atividades, o CRAMI promove o bem de todos, não fazendo distinção de raça, religião, etnia, sexo, posição social, e opção partidária e quaisquer outras formas de discriminação prestando serviços gratuitos. Tem como missão contribuir para que crianças e adolescentes tenham seus direitos garantidos, e que a educação dos pais e ou responsáveis sejam pautados no diálogo e não na violência. Oferta Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos na proteção Básica abrangendo todo o Município de Piracicaba. Em Parceria com a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social oferta o Serviço Especializado em Abordagem Social no âmbito da Proteção Social Especial de Média Complexidade e Centro de Referência de Atendimento à Mulher. Desenvolve também 3 projetos: Projeto de Atendimento Psicológico às Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência Sexual, Informar para Prevenir, Grupo Reflexivo da Violência Intra-familiar. O CRAMI Piracicaba foi fundado  por pessoas da sociedade civil, preocupadas em cuidar de crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica, bem como seus familiares, ao verificar que na cidade ocorriam muitos casos de crianças vitimadas e a ausência de programas para atender essa demanda. Nesta época ainda não havia o Estatuto da Criança e do Adolescente, tão pouco o Conselho Tutelar, e vigorava o Código de Menores. Foi ai então que começou o trabalho do CRAMI, com a sociedade civil chegando antes do Estado para atender ao fenômeno da violência doméstica contra crianças e adolescentes em Piracicaba. A primeira presidente do CRAMI Piracicaba foi a psicóloga Maria Christina Monteiro Stroka. O atual presidente é Edmir Bernardino Valente que encerra o seu mandato dia 3 de novembro, mas ele já esteve como presidente em outras oportunidades.

 

Maria Hilma de Oliveira Ganzella nasceu a 17 de maio de 1960 na cidade de Novo Cruzeiro, Minas Gerais. É filha de Jair Coelho de Oliveira e Nair Senna da Silva, que tiveram sete filhos: Edvaldo, Murilo, Maria, Marilene, Olivia, Marlucia e Vanusa.

Você estudou em qual cidade?

Quando eu era ainda bebe minha família mudou-se para Vitória, Espírito Santo. Estudei e permaneci em Vitória até completar 20 anos, quando então mudamos para Piracicaba. Aqui fiz a faculdade de Psicologia na UNIMEP. Estudava a noite e durante o dia trabalhava no Jornal de Piracicaba onde permaneci por seis anos, no setor de assinaturas, localizado a Rua Moraes Barros. Foi na época da Dona Antonietta Rosalina da Cunha Losso Pedroso, do Dr. Losso, Dr. Eugênio. Eu já estava estudando psicologia quando saí do Jornal de Piracicaba para fazer estágio na Dedini. Quando me formei trabalhei no Projeto NAM – Núcleo de Apoio Multiprofissional. Esse núcleo trabalha famílias nas comunidades. Eram quatro equipes compostas por psicólogas, assistentes social e pedagogos. Faziamos um trabalho com pessoas em condições de vulnerabilidade social. A minha equipe atuava no Jardim Vitória, Kobayat Líbano, Novo Horizonte, toda aquela região. Permaneci nessa atividade por quatro anos, era um trabalho muito importante.

Nessa época você já estava casada?

Eu casei-me em 1988, na Igreja Bom Jesus com Denilson José Ganzella, temos dois filhos: Vitor e Tiago.

Em sua função profissional, os problemas são das mais variadas naturezas, isso pode sair do campo profissional e interferir na vida pessoal?

Diante de determinadas situaçoes é natural ficar indignada. Procuro não levar para a minha casa as situações que vivencio profissionalmente. Mesmo porque meu marido trabalha em uma área completamente diferente, ele é engenheiro civil. 

Em que ano você ingressou no CRAMI?

Entrei em 2000. Eu já me identificava com essa demanda, a violência contra a criança e o adolescente é um tema que me interessava bastante, através do Jornal de Piracicaba li que o CRAMI estava contratando psicólogos. Quando entrei o CRAMI atendia a todas as violações de direitos da criança e do adolescente.

Em média quantas pessoas vocês atendem por mês?

Aproximadamente umas 250 pessoas. São vários projetos.

De onde vem os recursos?

Temos os associados, beneméritos, doadores. Realizamos eventos, atuamos na Festa das Nações representando a Coréia do Sul. Temos também convênio com o municipio no Serviço de Abordagem Social, desenvolvemos com a prefeitura também o CRAM – Centro de Referência de Atendimento da Mulher, temos algumas parcerias com a prefeitura.

Quais são os serviços que o CRAMI  presta à população?

Trabalhamos com a prevenção da violência por meio da convivência e fortalecimento de vinculos na faixa etária de 0 a 16 anos. Temos esse serviço da prevenção da violência.

Quando vocês são acionados?

Temos um projeto para atender as crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, esses casos chegam a entidade encaminhados pelos CREAS-Centro de Referência Especializado de Assistência Social, eles atendem a família, a criança, o Conselho Tutelar encaminha esses casos para os CREAS. Quando eles identificam que há a necessidade de um atendimento psicológico a essa criança que foi vítima de  violência, eles acionam o CRAMI encaminhando o caso. Temos também um projeto denominado Informar Para Prevenir. Tem como objetivo levar informações para crianças e adolescentes nas unidades escolares públicas municipais e estaduais. Somos constantemente convidados a dar essas palestras.

Quais são os efeitos dessas palestras para as crianças e jovens?

Esse projeto tem como objetivo de levar informações, identificar situações que não foram  notificadas ainda, existem mas estão ocultas. E encaminhar essas situações para o atendimento. Orientar o encaminhamento para o Conselho Tutelar, inserir essas pessoas nos atendimentos nos serviços do município.

Vocês trabalham com todas as classes sociais?

Trabalhamos com todas as faixas de público. A violência infelizmente está em todas as classes sociais. Esse tipo de desvio de conduta não escolhe a posição financeira ou social. A violencia é cultural, histórica, social.

Quando é mencionado o termo violencia, a primeira referência que ocorre é a violencia sexual.

Ela pode ser a violência física, a negligência, o abandono. Há muito abandono de crianças e adolescentes. Quem atende a essa demanda são os CREAS, trabalhamos com projetos, as entidades se complementam. O nosso trabalho complementa o serviço que já existe. O número de casos de violência é grande. No passado quando só existia o CRAMI atendiamos todos os casos de violência contra a criança e o adolescente. Com a criação do Conselho Tutelar cabe ao mesmo atender as notificações de violações de direitos. A responsabilidade é do poder público, o nosso serviço é complementar.

Vocês tem um ambiente com decoração diferenciada, apropriada para receber pessoas em condições especiais.

O prédio que ocupamos é alugado, temos em construção uma sede própria que deverá ter uma melhor acessibilidade, infelizmente por falta de recursos as obras estão praticamente paralisadas.

Nos seus 17 anos de atuação no CRAMI qual é sua sensibilidade com relação ao aumento da violência infantil?

Percebo que agora as pessoas falam mais sobre essa temática. Existem mais orgãos envolvidos nessa questão, o próprio governo criou programas para atender a essa demanda. Com o aumento da divulgação as notificações aumentam. Pudemos constatar isso em 2009 com a morte da menina Isabella de Oliveira Nardoni, de cinco anos de idade, jogada do sexto andar, naquele ano atendemos 259 casos. A divulgação pela mídia foi decisiva. Neste ano, se falarmos apenas sobre casos de violência sexual, no decorrer deste ano atendemos até a presente data 71 crianças.

Como é a vida do adulto que teve sua infância ou adolescência traumatizada?

É retirada dela o direito de ser criança. A maioria dos casos de violência ocorre dentro de casa, alguém da própria família pratica a violência, na maioria dos casos o agressor convive com a criança. Tivemos aqui os mais diversos tipos de situações. Muitas vezes a criança ou o adolescente não relata o que está acontecendo com ele por serem ameaçados. Isso reflete na vida da criança como um todo.

No CRAMI a pessoa vai ser orientada como deve proceder frente a uma situação de violência?

Exatamente, procuramos orientá-la qual é o melhor procedimento a ser tomado, para quais orgãos deve se dirigir, enfim quais medidas a pessoa que está geralmente em pânico deve tomar. O CRAMI tem o atendimento das 8 horas da manhã até as 5 horas da tarde, no período do almoço há sempre alguém de plantão. Situa-se a Rua Floriano Peixoto, 1063, entre a Rua Benjamin Constant e Avenida Armando Salles de Oliveira, centro. O telefone é 3302.6797.  

Viviane Bertoncello é psicologa do CRAMI e atende vítimas de violência, estudou na UNIMEP, formada na turma de 2003, trabalha no CRAMI ha 10 anos, é piracicabana, nascida a 17 de julho, casada com Fábio Bertoncelo, são pais de um filho de nome Artur.

Viviane, o espancamento deixa marcas visíveis, enquanto outro tipo de violência deixa marcas psicológicas, pode-se afirmar que diminuiu o espancamento infantil?

Não sei se é possível afirmar que não existe mais espancamento contra a criança, a sociedade começou a refletir sobre isso. Ainda existem muitos casos que são denunciados ao Conselho Tutelar, ainda existem crianças e adolescentes que vão a óbito devido ao espancamento. Antigamente o pensamento corrente era de que: “O filho é meu, faço o que eu quero”. Após o caso Bernardo Boldrini, então com 11 anos de idade, encontrado morto em um buraco na área rural de Frederico Westphalen, no Norte do Rio Grande do Sul, seu nome foi dado a nova lei que proíbe bater em uma criança. Ainda há alguma polêmica sobre o assunto, há quem afirme que se os pais não baterem hoje a polícia terá que bater no futuro. Houve uma abertura ao dialogo sobre o assunto.

O fato de ser permitido o trabalho como menor aprendiz aos 14 anos de idade contribui na formação do menor?

Viviane afirma: “Acredito que atualmente a criança tem mais informação, isso não significa que tenha maior formação. É suscetível a todo tipo de informação da mídia. Uma criança ou adolescente sozinho acessando a internet é como deixar na rua. É muito vulnerável.”

 As crianças que são vitimas em sua grande maioria são de lares desestruturados?

Falta de estrutura social, isso engloba também o aspecto financeiro, o problema social ocorre quando a pessoa está a margem da sociedade. A pessoa não consegue emprego formal, não consegue alugar uma casa, passa a morar em área de risco, o local em que ela mora é insalubre, pessoas que estão em conflito com a lei também moram lá, A porta fica aberta para que se torne um desviante, a ausência do Estado faz com que o espaço seja ocupado por pessoas que disputam o poder com o Estado.

Qual é a sua perspectiva para quando as crianças de hoje se tornarem adultos?

Sempre tenho esperança. Fico triste em ver a escola com baixa qualidade, nossas crianças merecem coisa melhor. Parece haver uma falta de interesse político em ter escolas públicas de ensino básico com excelência, como tivemos no passado. Se o ensino formar bons cidadãos eles ao constituírem uma família no futuro irão transmitir bons princípios. As noticias que a todo o momento nos chegam são decepcionantes e isso reflete na população com muito impacto. Há uma corrente de pensamento que afirma que quando chegamos ao caos total aparece uma luz.

Por que um pai espanca um filho?

Muitos não conhecem outra forma de educar. Faz parte da nossa cultura, estabelecer limites pela violência.

Há casos em que os pais ocupam cargos com altos salários, tem um alto padrão de vida, mas deixam seus filhos aos cuidados de pessoas com pouca ou nenhuma formação para a educação dos mesmos?

A corrida desenfreada para atingir uma posição de maior destaque em alguns casos faz com que a criança fique com uma babá. Acho que o pai não tem consciência plena do contexto. Ele pode até imaginar que está proporcionando uma oportunidade a uma pessoa para que cuide de seus filhos e tenha a oportunidade de ter um emprego. A criança tem uma babá, mas a referência é o pai e a mãe.

Há um caso emblemático, onde a filha facilitou o assassinato dos pais pelo seu namorado e o irmão deste, foi constatado que a filha esperou a babá ir embora, pois foi ela quem deu-lhe carinho, cuidou quando estava doente.  Portanto ela preservou a vida da babá.

Nesse aspecto sim, há até um filme: ”Que Horas Que Ela Volta”, aborda um tema parecido. Tem famílias que acham que dando bens materiais está atendendo a necessidade do filho. “Compra” o carinho e atenção da criança com presentes.

O CRAMI atua também junto aos pais?

Nós temos um grupo onde comparecem as mães com os filhos, nesse grupo os pais são separados e não são presentes na vida dos filhos. A previsão de como esse grupo deve acontecer vem do Ministério do Desenvolvimento Social, denominado Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos. A assistente social se encontra periodicamente com as mães junto com os seus filhos com o objetivo de fortalecer os vínculos, para que ela não sucumba com a violência. Temos convivido com as mais diversas situações, como por exemplo, filhos de famílias abastadas que não recebem nenhum tipo de atenção ou orientação por parte da família, tem o apoio financeiro mais nada. Um exemplo é um adolescente de 16 anos que não quer estudar, passa o dia todo jogando vídeo game. Outra criança tem 5 anos, a família permite que ele ande pelas ruas o tempo que quiser.  Nesses dois casos eles estão com muita dificuldade em socializarem-se. Hoje os jogos de vídeo game são on-line, tem pessoas do mundo inteiro jogando simultaneamente. Há uma rede de pedofilia que usa os jogos para conhecer os meninos. Um desses meninos fez amizade com um homem de São Paulo e que veio até Piracicaba para conhecê-lo. Tudo iniciou pelo vídeo-game.

O vídeo-game também é um alçapão para captar crianças?

Infelizmente deixou de ser apenas um jogo inocente. Os pais têm que ficarem muito atentos ao que os seus filhos estão acessando. As crianças e os adolescentes ficam vibrados nos youtubers que é um menino que fica comentando jogos de videogame e ele vai passando suas idéias, ele fala horas de videogame, de repente ele começa a falar sobre outros assuntos.

Há características próprias a cada classe social?

As dificuldades são semelhantes, alguns aspectos, porém se destacam, nas classes menos favorecidas destaca-se a violência, nas classes mais abastadas a negligência. Ambas são prejudiciais. Ninguém nasce rejeitando as regras sociais, há um histórico de vida, não é que nasceu assim.

MARIA APARECIDA FRANCO DE BARROS FORNARI


PROGRAMA PIRACICABA HISTÓRIAS E MEMÓRIAS
JOÃO UMBERTO NASSIF
Jornalista e Radialista
joaonassif@gmail.com
Sábado 23 de setembro de 2017

Entrevista: Publicada aos sábados no caderno de domingo da Tribuna Piracicabana
As entrevistas também podem ser acessadas através dos seguintes endereços eletrônicos:

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ENTREVISTADA: MARIA APARECIDA FRANCO DE BARROS FORNARI


 

Maria Aparecida Franco de Barros Fornari nasceu na cidade de São Paulo a 13 de setembro de 1957, é filha de Maria Aparecida Franco de Barros Fornari (mãe e filha têm o nome igual) e João Benedito de Barros Fornari, contador e empresário, em 13 anos tiveram 12 filhos: João Carlos, José Roberto, Antonio Luiz, Paulo Eduardo, Pedro Ricardo, João Benedito, Mario Sérgio, Maria Aparecida, Célia Regina, Ana Cecília, Carmem Lia e Valter Guilherme.

Em qual bairro de São Paulo você cresceu?

Cresci no bairro Bom Retiro, fiz meus estudos no Colégio Santa Inês e o curso técnico eu fiz no Colégio Sagrado Coração de Jesus, bairro Campos Elíseos, o curso superior estudei na Faculdade de Educação Física, em Mogi das Cruzes, conclui o curso em 1976.

Seus pais foram grandes vencedores em educar todos esses filhos!

Meu pai disse que a herança dele para os filhos seriam dois diplomas: de um curso técnico e um curso universitário. Todos nós temos dois diplomas.

Com qual idade você começou a trabalhar?

Aos 19 anos comecei a trabalhar. Eu tinha cursado também o curso de Laboratório de Análises Clínicas no Liceu Coração de Jesus. O primeiro laboratório em que trabalhei foi o do Hospital Bandeirantes, situado no bairro da Liberdade. Depois fui trabalhar no Elkis e Furlanetto Laboratório Médico. Lá fazia análises clínicas, exames de laboratório.

Até que idade você permaneceu em São Paulo?

Até quando me casei. Por motivos profissionais do meu marido, ele era jogador de futebol, ele jogou até o juvenil em um grande time de São Paulo, depois o seu passe foi vendido para times do interior: Araras, São Carlos, e outras cidades, eu fui acompanhando. Tivemos um filho: Renan. Após percorrermos esse circuito todo voltamos à São Paulo, quando foi possível adquirirmos uma casinha compramos na Praia Grande, nessa época meu filho tinha seis anos. Até hoje meu filho mora lá. Eu trabalhava em São Paulo e morava na praia. Ia com ônibus fretado, por 18 anos fiz essa rotina de trabalho.

Você viajava todos os dias?

Todos os dias. Por ser ônibus fretado a viagem era menos cansativa. O ônibus parava quase na porta de casa, às vezes dormia, quando tinha muito trânsito passava um filme, jogava bingo no ônibus.

Você sempre foi muito animada!

Sempre!

Como você veio à Piracicaba?

Desde o ano 2000 meus pais vieram morar em Piracicaba. Eles foram sempre muito independentes dos filhos, mas eram dependentes um do outro! Construíram uma casinha no Lar dos Velhinhos de Piracicaba. Minha tia, irmã do meu pai já morava aqui. Eu não conhecia Piracicaba. Meu pai faleceu em 2005 a minha mãe ficou conosco em São Paulo, eles tinham um flat naquela cidade. Eles que iam para São Paulo todos os finais de semana, para visitar os filhos. A maioria mora lá. A casa construída no Lar dos Velhinhos continuava pertencendo a ela. Nesse período ela manifestou a vontade de voltar a residir em Piracicaba. Nessa época eu e minhas irmãs tínhamos um instituto de estética em São Paulo, eu ia e voltava da Praia Grande todos os dias. Eu já estava divorciada. Minha mãe queria voltar para a casinha dela no Lar dos Velhinhos. Minhas irmãs e eu decidimos encerrar as atividades comerciais que estávamos desenvolvendo. Vim para Piracicaba para ficar com a minha mãe. Ela falava que o meu pai ficava no pavilhão dos homens, dando comida para eles na hora do almoço, enquanto ela ficava no pavilhão Lula dando comida e brincando com as moradoras. Foi quando pensei em um projeto: resgatar a criança interior dos idosos, com brincadeiras. Por dois anos trabalhei como voluntária. Eu tinha umas reservas financeiras, minha mãe também ajudava, até que entrei no projeto da Prefeitura Municipal, da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social – SEMDES A piscina que hoje existe no Lar foi ativada, por estar profissionalmente habilitada fui convidada a dar aulas de hidroginástica.

Você tornou-se uma pessoa conhecida junto aos pavilhões?

Brincava nos pavilhões, no começo foi muito complicado, era uma pessoa nova entrando em um ambiente diferente. As irmãs foram as primeiras a me receberem, depois as idosas, entrando com alegria eu ia contra um clima de espera da morte iminente. Creio que mudei um pouco o modelo de comportamento existente no pavilhão. Essas pessoas não tinham mais razão de viver. Com a minha alegria, com as minhas brincadeiras, parece que perceberam que tinha mais alguma coisa para fazerem.

Você trabalha com uma situação muito complicada, que é a pessoa estar próxima da sua finitude e muitos têm a consciência disso.

Desenvolvi uma intuição apurada nesse sentido, abordo a espiritualidade de cada um. Sou Reikiana, Reiki é uma palavra japonesa que significa “Energia Vital Universal”. O Reiki não é uma religião e nem uma crença. Ele abre novos caminhos para experiência espiritual e o aprendizado. Também fazendo o uso de técnicas holísticas que busca despertar na pessoa o auto-equilíbrio corpóreo, psíquico e social. A pessoa idosa enxerga a sua alma. Se for feito de coração, com profunda sinceridade, eles aceitam tudo. Se sentirem que há uma doação de fato ninguém é melhor para eles. A sinceridade tem que ser real e legitima. Qualquer coisa que lhes for prometida deve ser feita no menor espaço de tempo possível. Não deixe para amanhã, não procrastine, não adie.

Em que ano você começou a trabalhar com eles?

Aqui foi em fevereiro de 2006 quando cheguei. Fui registrada como funcionária do Lar dos Velhinhos em 2008 como recreacionista. Sou a pessoa responsável por passeios, festas, desenvolvimento da parte motora, física, brincadeiras, tenho que levantar o astral dessas pessoas. Hoje trabalho com 150 idosos carentes, sem contar o pessoal dos chalés, muitos entram na dança.

Existem casos em que os filhos deixam pais e mães aqui, como se fosse uma mala e vão embora?

Têm! Muitos casos, em especial dos carentes, em maior parte mulheres. O Lar tem várias realidades co-existindo. A realidade dos chalés, seus moradores estão aqui por opção própria. Têm liberdade completa de locomoção, independência. A realidade dos pavilhões dos homens carentes, onde muitos trazem suas cicatrizes de vida difícil, a realidade das idosas carentes que também percorrem, de forma geral, experiências dolorosas. Algumas foram trazidas por pessoas amigas, diante de situação de dificuldades básicas. Nem mesmo parentes muitas vezes as procuraram. Ou procuram.

Como fica o sentimento de uma pessoa em uma condição dessas? 

Temos que entrar com a compaixão. Não nos compete julgar. Não conhecemos o passado dessa pessoa, como foi sua conduta junto a outras pessoas. Há algumas situações em que a pessoa age conforme lhe ensinaram. Sem julgarmos ninguém, eles estão aqui, são bem cuidados, a alegria irá trazer um crescimento evolutivo maior. Encarar a realidade, um dia após o outro. Vive-se o dia de hoje.

Eles têm atividades externas as dependências do Lar?

Todo mês eu tenho um passeio com eles: praia, circo, festividades em diversos locais da cidade. No espaço destinado tem o forró toda quinta feira, das 14:00 às 16:00 horas, O Conjunto Recordar participa toda semana, isso já existe há quarenta anos. Se um músico falece ou fica impedido de tocar outro o substitui. São todos idosos também. Não perdem uma quinta feira, e os idosos “arrastam o pé”! Vem muitas pessoas de fora do Lar, geralmente do  bairro. Cantam, dançam, as cadeiras de rodas são empurradas, têm bastante voluntários.

Os ocupantes das cadeiras de rodas também participam?

Dançam também! Dentro da possibilidade de cada um. Movimentam-se sobre as cadeiras, contagiados pela música. Mexe com o ânimo deles e principalmente: saem do pavilhão. É a minha intenção, tirá-los do pavilhão. O idoso tem suas características próprias, prezam pela sua zona de conforto. Com essas atividades saem da rotina, muitos esperam o forró com bastante ansiedade. Quando temos um passeio eu não posso avisá-los com antecedência, a excitação é muito grande, começa a dar dor de barriga, parecem crianças! Só aviso a coordenadora de cada pavilhão, vou sair com tais pessoas, devem ficar arrumadinhos.

Eles dedicam-se a atividades artísticas?

Temos a Maria Amélia que realiza terapia ocupacional, os idosos pintam, desenha, ela faz trabalho em grupo.

Se a pessoa quiser ser voluntária vocês aceitam?

Lógico! Sempre estamos precisando de pessoas com boa vontade. É feito um cadastro, é estabelecido um cronograma de disponibilidade, e a pessoa passa a integrar o grupo de voluntários.

A partir de que idade a pessoa pode ser voluntária?

A rigor não existe idade que estabeleça limite para auxiliar o semelhante. Existe aptidões próprias a cada tarefa. Pode ser desde pequeno, é muito bom ver essa realidade toda. Tive um exemplo, em um sábado um menino completou 8 anos, ele pediu aos pais como presente de aniversário, fraldas geriátricas para entregar ao Lar dos Velhinhos. Todos os seus familiares, convidados para a festa deram fraldas, ele veio até o Lar, trouxe as fraldas, fizemos a festa de aniversário dele aqui também, os pais trouxeram bolo, para cantar parabéns junto com os idosos. Olha a consciência dessa criança! Está sendo moldado o caráter de um adulto de valor. Até na formação do caráter da criança essa visita aos idosos é transformadora. Há um detalhe muito importante, chamar a atenção da criança para que se cuide e no futuro venha a ter uma maturidade saudável. Ele está vendo em sua frente o que será no futuro: um idoso!

Fala-se muito na interação de crianças e idosos, como você vê isso?

Sempre tivemos as visitas das crianças ao Lar.

Qual é a reação dos idosos?

É um processo fantástico! Tanto com relação às crianças como em relação aos idosos. As crianças ficam admiradas porque não é a realidade que eles têm em casa. Geralmente os avôs deles estão na faixa de 50 a 55 anos, preservam boas condições de saúde e locomoção. Foge da realidade das crianças de 9 a 12 anos que vem até o Lar. Proporciono a interação com brincadeiras, cantando, utilizando bolas. Aí as crianças se soltam.

Essas visitas são boas para as crianças?

Muito! Eles passam por um processo de preparação anterior pelos seus professores, então já chegam orientados. É enfatizada a realidade dos idosos. Os idosos adoram. Eles são carentes, é o “netinho” deles. Eles se projetam na criança.

Outra atividade peculiar é a visita que os cães fazem aos idosos.

A cada 15 dias vem um grupo de voluntários trazendo cães especializados em visitas desse gênero. São de grande e médio porte. Foi um processo difícil  a introdução dessa atividade junto ao Lar. Houve resistência por alguns setores do Lar, preocupados com a saúde e bem estar do idoso. Só após um trabalho de referência intenso, onde foram demonstrados os benefícios que esses cães levam a local de grande vulnerabilidade como hospitais de câncer, hospitais, essa resistência foi vencida. Os cães vêm todos os domingos, permanecem por uma hora. Os idosos vibram, brincam, acariciam. São animais que receberam técnicas especiais para conviver com esse tipo de situação. O gasto de energia dos cães é tamanho que os seus donos afirmam que ao saírem os cães dormem o dia todo.

O que é o “Show da Alegria”?

Anteriormente era denominado “Disco de Vinil”, até que a pessoa responsável desligou-se do Lar. Atualmente os idosos cantam, recitam, dançamos, fazemos umas coreografias, ensaia a quadrilha, tudo para deixar o ambiente alegre. Ficamos das 8:00 até umas 10:15 da manhã com eles, passamos o café, bolachinha, tem um grupo que faz bolo. Fiéis de igrejas de diferentes credos trazem algo para os idosos, cantam.

Nesses 11 anos em que você está aqui deve ter visto muita coisa aqui dentro.

Muita! Grandes alegrias, tristezas. Ressalto muito que aqui dentro que o bem maior que eles me fizeram é muito pelo pouco que doei. (Maria emociona-se nesse momento). Aprendi muito com eles, houve uma evolução muito grande dentro de mim, espiritual, de compreensão, paciência, tolerância. Isso eu aprendi tudo com eles! Sou uma pessoa muito elétrica, quero tudo para ontem, tive que ir ao tempo deles, ia levá-los para passear, na hora em que ia buscar geralmente dizia: “- Ah! Eu vou ao banheiro!” Tinha que esperar. Para mim isso era difícil de entender. O idoso de forma geral é temperamental. É necessário saber falar com eles.

O idoso não tem muito autocensura, ou seja, tem pouco freio?

Isso eu aprendi, achei que foi bom para mim! Eu era uma pessoa muito tímida. Tive que me soltar totalmente, é uma escola.

Os idosos são vaidosos?

São! As mulheres são vaidosas, quer um batonzinho, pintar a unha, pintar cabelo, enfeitarem-se com um colarzinho, um brochinho. Os homens são mais com radinho de pilha e relógio. Quando quebram um relógio vêm imediatamente me procurar! As idosas gostam muito de boneca! Teve um ano que fiz uma campanha com os moradores de chalés e arrecadamos fundos para dar bichinhos de pelúcia! Comprei 600 bichinhos de pelúcia! Elas amaram! Sempre pedem boneca, estamos falando de pessoas na faixa etária dos 70 aos 90 anos. Eles querem alguma coisa para abraçar, para pegar. É uma carência.

Como educadora física, como você utiliza as áreas de exercícios físicos?

Acho ótimo! Tem uma escala de horário de atividades, os maiores usuários é o pessoal dos chalés, alguns aparelhos por terem sido instalados recentemente ainda precisa de algum tempo para que o habito de uso seja criado. A hidroginástica funciona para os que não se utilizam de fraldas. Hoje temos por volta de 40 alunos, a piscina é térmica, coberta, com aquecimento solar ou a gás.

A quadra de basquete está em uso?

Vamos cobrir, quero ativar isso. Nem que seja uma brincadeira com bola. Quadra já chama a atenção, resgata a infância do idoso. Conseguimos o patrocínio de um benfeitor (pessoa física) para a cobertura com telhas térmicas.

O que é ginástica cerebral?

É um sistema de exercícios específicos que oferece a possibilidade de utilização do cérebro de maneira total, em todo o seu potencial. Quero trazer essa atividade também para a quadra coberta. Facilita muito o acesso do idoso.

Com relação a alimentação, como funciona?

Temos duas nutricionistas, uma só cuida dos pavilhões e dieta deles e outra que elabora o cardápio geral. Os idosos dos pavilhões tem 6 alimentações diárias: café da manhã; uma fruta; almoço; lanche da tarde; sopa no jantar e a ceia as 7:00 horas da noite.

A comida é gostosa?

Muito boa! Eu como daqui, minha mãe as vezes cozinhava, as vezes pegava aqui.

Maria, o que eles gostam de comer mas que não é habitual ter?

São os salgadinhos: coxinha, empadinha, esfiha, kibe. Bolo eu faço todo mês, no pavilhão masculino e no pavilhão feminino, quando são comemorados os aniversariantes do mês. Faço dentro do pavilhão deles, tem muitos acamados, muitos que não saem. Para ter a energia da alegria, do aniversário, providencio um presentinho para todos eles, coisas simples. Eles gostam muito de sabonete, pasta de dente, toalhinha pequenininha, desodorande Roll On,

Aqui você carrega suas baterias e descarrega suas energias?

Considero aqui como minha missão, larguei tudo da minha vida, para vir para um lugar que nem conhecia, acho que fui um instrumento. Sem eu saber, para vir para cá eu me preparei. Fiz vários cursos filosóficos. Faço muita meditação, trabalho com yoga. Faço reflexões. Não culpo ninguém se me sentir magoada. Se me tratam mal. Não é culpa das pessoas que fazem isso, a minha consciência é: “Por que que me afetou isso” ! O que eu tenho que administrar dentro de mim para não ser machucada? O problema está comigo, as pessoas podem falar o que bem entenderem.

Você já foi rejeitada por alguém alguma vez?

Ah ! Já!

Como você trabalha isso?

Olhando no espelho! A rejeição está em mim, não está na pessoa que me rejeitou! Eu que estou me rejeitando de alguma forma! É um reflexo meu! As pessoas jogam tudo para você por ser um reflexo delas e não meu! A pessoa me diz: “Maria, hoje você está triste!” Respondo imediatamente: “ Ah! Não! Eu sempre fui alegre!Não tenho um porque de estar triste! Olhe dentro de você e vê se não é com você”. Uma pessoa rejeitada dentro de um grupo, a rejeição é ela quem estabelece. Está sendo rejeitada por ela mesma. Ela tem que ver como um processo de evolução e não algo ruim. Vai fazer uma autoanalise, ver porque foi afetada por isso? Qual é o motivo para sentir-se rejeitada? O que você faz para afastar as pessoas? Isso é autoconhecimento.

O aspecto físco da pessoa póde criar rejeição? 

Até pode! O problema de quando a pessoa rejeita outra tem que ser procurado o que causou isso, tem um motivo, ninguém aceita esse motivo, por deixar se levar pela opinião de outra pessoa. O que irão falar de mim se eu for assim? Uma pssoa fica magoada se permite-se magoar. A meu ver o Lar dos Velhinhos de Piracicaba é um paraiso para quem sabe viver. A nossa vida é isso. Aqui tem muitas oportunidades de autoconhecimento, de evolução, de ser uma pessoa melhor. Temos múltiplas realidades aqui dentro, quem vem aqui fica abismado, não tem idéia da dimensão do que o Lar é. A realidade de cada um. A personalidade individual reflete no coletivo.

SYLVANA ZEIN


PROGRAMA PIRACICABA HISTÓRIAS E MEMÓRIAS
JOÃO UMBERTO NASSIF
Jornalista e Radialista
joaonassif@gmail.com
Sábado 16 de setembro de 2017.

Entrevista: Publicada aos sábados no caderno de domingo da Tribuna Piracicabana
As entrevistas também podem ser acessadas através dos seguintes endereços eletrônicos:

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ENTREVISTADA:SYLVANA ZEIN



 

Beatriz Vicentini questiona em artigo de sua autoria: Seria Piracicaba a mesma sem a UNIMEP? A maioria dos piracicabanos, provavelmente diria não. Centenas de estudantes formaram-se nestes 50 anos levando da UNIMEP uma consciência crítica com relação ao país e à sociedade, centenas de professores tiveram em suas salas de aula oportunidade ímpar de serem docentes sem qualquer restrição de pensamento, centenas de funcionários ajudaram a fazer essa instituição se definir como diferente de uma simples Universidade interessada no lucro e no mercado. Sylvana Zein tem estreita ligação com a UNIMEP por laço trabalhista e familiar.

 

Sylvana Zein é libanesa, sua mãe Sycil (Cecília) Akzam, era síria e seu pai Elias Khalil Zein é libanês. Eles residiam em Beirute quando do nascimento de Sylvana. Ao completar dois anos e meio de vida, juntamente com seus pais veio para o Brasil.

Qual era a atividade do seu pai no Líbano?

Ele tinha curtume de couro de boi e de carneiro. Faziam tapetes com a pele de carneiro, almofadas, como lá nas montanhas é muito frio, cai neve, depois de curtida as peles de carneiro se transformam em uma espécie de edredom ou manta, feito pelas mulheres.

O que os trouxe para o Brasil?

Um primo do meu pai, Simom Hajjar, que mora no Estado de Minas Gerais atualmente, contou ao meu pai que a exportação de carne e a fabricação de calçados estavam expandindo muito. Havia a necessidade de curtumes. Na época viemos a convite do governo brasileiro, viemos com visto permanente. Meu pai teve curtume em Pederneiras, São Manoel, Bauru, Bariri, Brotas.

Do Líbano vocês vieram para Santos?

Embarcamos em Beirute, fizemos uma escala em Alexandria, no Egito de lá fomos até Nápoles, onde permanecemos por uma semana. Em seguida embarcamos no navio Julio Césare, que foi reformado e está até hoje navegando. Quando chegamos em Santos o primo do meu pai já estava esperando-nos. Fomos até São Paulo, onde pernoitamos, já morava em São Paulo um tio do meu pai. Em seguida fomos para Pederneiras. Meu pai começou a trabalhar no curtume do primo Simom, eram sócios, após algum tempo meu pai construiu um curtume em São Manoel. Meu pai teve um problema sério de saúde, até recuperar-se fomos para Bauru, onde ele montou um comércio. Após ter-se recuperado ele decidiu retomar para o ramo de curtume, fomos para Bariri onde permanecemos por nove anos.

Em Bariri você fez seus primeiros estudos?

Lá estudei na Escola Professor Euclides Moreira da Cunha, onde cursei o grupo escolar e os dois primeiros anos de ginásio. Em seguida voltamos para Bauru. Uma pessoa da família nos convidou para vir morar em Piracicaba, disse que a cidade estava expandindo muito. Meu pai veio em 1971 e montou um comércio, a principio loja, depois lanchonete.

Você continuou estudando?

Aqui fiz o ensino médio no Colégio Piracicabano. A seguir, aos 18 anos, passei a trabalhar na UNIMEP. Iniciei na operação de máquina de Xerox, no prédio central a Rua Boa Morte esquina com a Rua Rangel Pestana. Estudando, fiz o curso de Administração de Empresas, prestando exames para vagas internas, cheguei a analista financeira. Em 1994 vim para o Campus Taquaral onde permaneci até 2011 quando me aposentei por tempo de serviço.

Você chegou a se casar?

Casei-me duas vezes. Tenho quatro filhos, três naturais e um adotivo: Jéssica, Samir, Antonio e Isabelle.

Foi lá que você conheceu o professor Elias Boaventura?

Apesar dos coordenadores, entre os quais eu estava, termos reuniões periódicas e mensais, a nossa relação inicial sempre foi de estrito profissionalismo e até mesmo de certa distancia. Após termos nos separados de nossos conjuges, houve uma ocasião em que ele foi homenageado, e a partir de então passamos a conversar como amigos, até percebermos que tínhamos afinidades. Ele já não era mais reitor. Houve uma evolução natural do relacionamento entre nós e contraímos segundas núpcias em 1989.

Como era o professor Elias Boaventura?

Era um espírito de Luz, uma visão totalmente diferente e muito elevada de todas as coisas. Gostava de polemizar, contestar, para fazer as pessoas pensarem. Ele dizia que quando todo mundo concorda com uma coisa isso não é saudável. Ele assumiu a reitoria em 1978 e foi reitor até 1986. Ele colheu os frutos do fim do regime militar. O reitor que o antecedeu foi o Dr. Richard Senn.

O campus da UNIMEP originariamente deveria ser onde?

Era para ser onde hoje é o Shopping Piracicaba. Aquele terreno era da UNIMEP. Não foi autorizada a construção da UNIMEP naquele local, as autoridades de segurança nacional não queriam outra escola em frente a FOP- Faculdade de Odontologia de Piracicaba. Queriam evitar o agrupamento de estudantes. Houve a negociação, a troca da Fazenda Taquaral pela área onde é o Shopping hoje. A história da UNIMEP de Piracicaba ainda é muito recente para ser definitivamente delineada. As visões nem sempre coincidem. O seu grau de importância é substancial para Piracicaba e para o País. O Dr. Senn iniciou o projeto de construção do Campus Taquaral, em 1975 houve o reconhecimento da Universidade, a primeira Universidade Metodista da América Latina, ele articulou junto às autoridades maiores da época para o surgimento da UNIMEP. O Elias esteve muito envolvido na montagem dos processos, foi muitas vezes a Brasília, conversou com ministros.

Como surgiu o Congresso da UNE na UNIMEP?

Em 1979 houve o primeiro congresso da UNE, ela ainda estava na ilegalidade. Vieram muitos político da época e que ajudaram a UNE a voltar à legalidade. Pela UNIMEP de então, como em muito poucas universidades do país, passaram as figuras mais importantes da resistência do país na luta pela democracia que teimava em surgir e que nem sempre eram bem-vindas em outras instituições: D. Helder Câmara, D. Paulo Evaristo Arns, Luiz Carlos Prestes, Paulo Freire, Luiz Inácio Lula da Silva, Dante de Oliveira, Frei Betto, Roge Ferreira, favelados, palestinos, presidentes da UNE, metalúrgicos do ABC, petroleiros de Paulínia, comitês de anistia, comitês de solidariedade a governos da América Latina, convidados estrangeiros como o Prêmio Nobel da Paz Perez Esquivel, ministros da Educação de Cuba e Nicarágua. O João Herrmann Neto à frente da prefeitura. O Elias era brizolista.

Há uma versão de que um poderoso ministro da época ofereceu uma série de benesses à UNIMEP desde que a mesma não promovesse esse encontro nitidamente contrário ao pensamento governamental vigente?

Isso foi criatividade de uma pessoa de Piracicaba e ao que parece queria vantagens pessoais. Essa pessoa já faleceu.

Para o Elias o que significou esse congresso em Piracicaba?

Como educador o Elias sempre acreditou que temos que preparar os jovens para fazer um país grande. Ele acreditava nos movimentos estudantis bem organizados, bem politizados.  Dentro do movimento estudantil tem todas as correntes, não é só esquerda, quando eles vieram tinha grupos da direita. Trabalhei nos dois congressos da UNE, de 1979 e de 1981. Em 1985 houve o congresso da Juventude Palestina. Isso incomodou muita gente de fora de Piracicaba. Publicaram matéria paga na grande imprensa nacional contra o que estava acontecendo em Piracicaba. O Elias era muito envolvido na questão da Igreja Metodista, ele sempre foi a favor dos menos favorecidos: os palestinos, os árabes em geral, os africanos. Uma coisa que quase ninguém sabe: quem fundou o Movimento Negro em Piracicaba foi um “branquelo” de olhos azuis, chamado Elias Boaventura! Noedi Monteiro foi escolhido para ser o líder. O Elias atraiu os jovens negros, deu bolsa para quem quisesse estudar, temos diversos profissionais negros que ingressaram nesse período. O Elias foi muito criticado, chegou a receber ameaças, de que ele estava se metendo onde não devia. Onde já se viu montar um movimento negro? Estava muito bom do jeito que estava! Quando o Movimento Negro de Piracicaba completou 30 anos o Elias recebeu um troféu de reconhecimento. Em março de 2015 tivemos a visita do Embaixador da Palestina para dar a aula magna aos alunos de Negócios Internacionais.

Quantas línguas você fala?

Português, árabe, francês e entendo inglês.




A sua cozinha é árabe?

No dia-a-dia acabo fazendo o trivial brasileiro, mas mesclo pelo menos uma vez por semana com pratos árabes.

Como você vê a UNIMEP?

A UNIMEP é um patrimônio cultural da cidade de Piracicaba! A infra-estrutura educacional em termos físicos e pedagógicos é de altíssimo nível. Infelizmente há uma concorrência desleal, instituições com objetivos exclusivamente financeiros, ligadas a grupos internacionais, com ações na Bolsa de Nova Iorque, massificaram o ensino, com um nível de péssima qualidade e preços de ocasião. Constroem barracões para serem escolas universitárias. A pergunta que faço, é quem tem coragem de contratar ou consultar um profissional desse nível?  É assustador!

Abordar assuntos tão polêmicos não é gerar indisposições generalizadas?

Ele quis mostrar que todos são pessoas como nós. Tem uma pátria. Sempre foi muito participativo, levou muitos ônibus para o movimento Diretas Já! Ficou no palanque.

Ele era pastor?

Foi pastor metodista.

O Elias escreveu vários livros?

Escreveu! A UNIMEP era a paixão dele. Um dos seus livros foi “Pela Autonomia Universitária” – Crônicas da luta na UNIMEP. Elias Boaventura nasceu em Coimbra, Minas Gerais, a 27 de janeiro de 1937, saiu de Coimbra aos 16 anos, foi para o Granbery estudar, permaneceu por oito anos no Granbery de Juiz de  Fora, como aluno interno, era aspirante ao ministério, o primeiro diploma dele foi de contabilidade.Foi professor de geografia, permaneceu 15 anos em Minas, em diversas cidades, ele veio à Piracicaba para fazer mestrado. Veio trabalhar na UNIMEP que ainda era denominada Faculdades Integradas. Foi atuante em Piracicaba por quarenta anos. Quando ele assumiu a reitoria no campus Taquaral não havia um tijolo assentado. A inauguração do primeiro bloco foi em 1979. A humildade do Elias era até chocante. Nunca quis uma placa sequer com o nome dele. Quando terminou o seu mandato tinha construído os blocos 2;3e 4; o bloco administrativo; a praça da alimentação e a parte da educação física. Depois o Professor Almir ampliou e aumentou o campus. Tem uma única placa em frente aos prédios administrativos com as datas das inaugurações dos prédios na gestão dele e só um versículo bíblico: “Até aqui nos ajudou o Senhor”. A fé dele era assustadora. Ele tinha um pensamento positivo, a energia das coisas acontecerem. Em 1975 quando a UNIMEP foi reconhecida, foi apresentado o desenho arquitetônico, o Dr. Senn havia encomendado. O Dr. Senn foi peça chave para o reconhecimento da UNIMEP pela sua posição política na época. O Elias contratou outra empresa, um escritório arquitetônico de Brasília, mudou tudo, ele sobrevoou uma vez para ver o terreno e o sol estava se pondo. A cor original da UNIMEP é laranja com marrom. Foi feito um desenho da forma que ele pediu os blocos todos e o sol. 

Elias Boaventura faleceu em Piracicaba em 2012. Graduado em Pedagogia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Santa Marcelina, de Minas Gerais, mestre em Filosofia da Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba, doutor em Educação pela Universidade de Campinas, Unicamp, foi professor da Pós-Graduação em Educação na UNIMEP e reitor. Membro da Academia Gramberyense de Letras, Artes e Ciências, presidente do Conselho Geral das Instituições da Igreja Metodista Cogeime, coordenador do Movimento em Defesa da Ética e Cidadania – Modec de Piracicaba. Em 1995 recebeu o título de “Dr. Honoris Causa” da UNIMEP e o de “Cidadão Piracicabano” Publicou seis livros: “ Desmemórias A força do Fraco”; Desmemórias a lição que ficou” Como bem escreveu Dom Eduardo Koaik quando leu o livro; As pessoas que fizeram o Elias ser quem ele era. Pessoas simples, do povo. Ele conta essas histórias, e através desas histórias vamos conhecendo o Elias. Outros dois livros, um é o mestrado dele e o outro é o doutorado. O livro “Comunicado Urgente”, que é o título que foi usado em 2006 para demitir os 148 professores. Um livro “Autonomia Universitária” é muito importante.  Ele escreveu muito para as revistas de universidades de outras instituições. Colaborou com muita coisa para muitas obrs acadêmicas. O Professor Clóvis Pinto de Castro na homenagem feita a ele disse que o Elias é considerado o melhor educador metodista do Século XX. Pelo trabalho todo, ele escreveu a historiografia da Educação Metodista no Brasil. Quando se faz pesquisa sobre a Educação Metodista, invariavelmente Elias Boaventura é citado.

Você faz parte de diversas entidades?

Participo da Sociedade Sírio Libanesa, desde quando passaram a aceitar mulheres, nos últimos 10 anos venho fazendo parte das diretorias. Já fui vice-presidente. Atualmente sou diretora social. Nossos eventos são todos voltados para a benemerência. As mensalidades do ensino da língua árabe são pagas com alimentos não perecíveis. Participo ainda da Associação dos Granberyenses; IHGP;Diretoria da Escola de Mães; do Lions Club Piracicaba Leste. Há mais de uma década somos mantenedores da Escola de Mães onde temos uma sala, todos fazem trabalhos voluntários, voltados também para as comunidades, em parceria com a Secretaria da Cultura da Prefeitura, fazemos mutirões da saúde, participamos daquele “Mexa-se” que a EPTV fez recentemente no engenho, temos outras atividades, como companheiros que ministram cursos básicos por exemplo: como fazer sabão utilizando óleo de cozinha já utilizado, voltado a comunidades carentes. È um trabalho com enfoque para a área da saúde e da cultura. Na Escola de Mães Professora Branca Motta de Toledo Sachs são atendidas gestantes, ela está situada a Rua Prudente de Moraes esquina com a Rua Alfredo Guedes, já existe há mais de 70 anos. Temos médicos voluntários, pediatras e ginecologistas. No oitavo mês as mães recebem o enxovalzinho, atualmente temos 24 voluntários.

ZÉLIO ALVES PINTO


PROGRAMA PIRACICABA HISTÓRIAS E MEMÓRIAS
JOÃO UMBERTO NASSIF
Jornalista e Radialista
joaonassif@gmail.com
Sábado 09 de setembro de 2017

Entrevista: Publicada aos sábados no caderno de domingo da Tribuna Piracicabana
As entrevistas também podem ser acessadas através dos seguintes endereços eletrônicos:

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ENTREVISTADO: ZÉLIO ALVES PINTO


 

Zélio Alves Pinto é penense, nasceu a 20 de fevereiro de 1938, em Conselheiro Pena, localidade próxima a Caratinga, Minas Gerais, onde se criou. É filho de Geraldo Alves Pinto, bancário, gerente do Banco Ribeiro Junqueira, e Zizinha Alves Pinto, que tiveram os filhos Ziraldo, Ziralzi, Zélio, Maria Elisa, Maria Helena, Maria Elisabete, Geraldo Júnior e os filhos adotivos: Dinair e outro filho de nome Geraldo.  Moravam bem no centro de Caratinga. Zélio é casado com Cecília Whitaker Vicente de Azevedo Alves Pinto, a Ciça, tiveram os filhos: Ana Cecília, Pedro e Fernando. 

Sua mãe tinha alguma atividade além de dona de casa?

Ela tinha um atelie de costura, em casa, naquela época era uma coisa muito animada. Não existia prêt-à-porter (roupa feita industrialmente em série), tinha as moças que trabalhavam lá em casa, havia as máquinas de costura. Mamãe ficava ensinando. Era uma atividade profissional muito importante, mamãe ensinar para elas a costurar, alguém tinha que costurar em cada casa. O prêt-à-porter mudou todas as capas de revistas do mundo, as roupas passaram a ser produzidas por outro enfoque.

Até que idade você permaneceu em Caratinga?

Até os 17 anos. Estudei lá o curso primário e ginasial. No Grupo Escolar Princesa Isabel. Minha primeira professora foi Dona Mimi, muito brava. De Caratinga fui para Belo Horizonte, meus dois irmãos moravam em república de estudante, fui morar nessa república a “Inferno 17”. Fiz o científico e o pré-vestibular, a minha intenção era ir para Paris. Meu primeiro emprego foi no Banco Ribeiro Junqueira, como Office boy, estafeta. O Ziraldo e o Ziralzi quando foram para Belo Horizonte foram com emprego no Banco Ribeiro Junqueira. Naquela época trabalhar em banco significava ter uma bela carreira profissional. Com uns 15 anos tive que fazer uma viagem para o banco fui de paletó e gravata, fui de Caratinga até Leopoldina de trem vestido como autoridade! Paletó,gravata e guarda-chuva italiano.Perdi o guarda-chuva, papai amava aquele guarda-chuva. A minha missão mais importante era voltar com o guarda-chuva. Esqueci em Leopoldina, nunca mais o resgatei, possivelmente deve ter ficado no trem da Estrada de Ferro Leopoldina. Era a locomotiva a vapor, chamada de Maria Fumaça, não podia ficar próximo a janela porque senão vinha fagulha que poderia atingir o olho. Tinha que usar guarda-pó para não estragar a roupa.

Em Belo Horizonte você trabalhava?

Trabalhava no banco, em seguida fui trabalhar em uma agência de publicidade, chamava-se Grant. (A Grant Advertising Publicidade foi instalada em São Paulo, em 22/03/1943, por Will Calway Grant. Ela existia em Dallas desde 1935. Funcionou, no Rio de Janeiro, desde 1944 até 1979 e teve filiais em Belo Horizonte e Porto Alegre. Foi a Terceira Agência de Propaganda a instalar-se no Brasil.) Da Grant fui convidado para trabalhar no jornal “O Estado de Minas” inicialmente como ilustrador de publicidade e depois virei repórter.

O seu talento artístico tem uma origem conhecida?

Em casa todo mundo era artista: papai era ator amador, mamãe pintava, meu irmão mais velho já era desenhista. O irmão do meio cantava, fazíamos muitas festas em Caratinga. Éramos uma família muito alegre, festeira.

Quem arcou com os custos da sua ida à Paris?

Eu mesmo! Se você sai de casa para ir a algum lugar, acaba indo! Com 17 anos a pessoa vai até a nado para Paris. Quando cheguei a Belo Horizonte fiz um estágio, fui ao Rio de Janeiro, onde fiz outro estágio, lá consegui uma bolsa de estudos que me permitiu ir à Paris.

A sua ida ao Rio de Janeiro foi através de algum convite?

Nesse aspecto sou mais mineiro, antes de ir a algum local faço uma sondagem. O mineiro não é introspectivo, ele é desconfiado mesmo. A introspecção é mais um estado de espírito e a desconfiança é mais um estado de animo. Eu vou para lá, mas quero saber como é que é, quero informação, não quero chegar lá cego. O mineiro nunca irá chegar cego a lugar nenhum, só se for um mineiro bobo! Mas não é o mineiro! O mineiro não é introspectivo, ele é tímido por natureza. Não se joga de peito aberto como o Ziraldo! O Ziraldo é o tipo mais anti-mineiro que já vi! Por isso ele se deu tão bem no Rio de Janeiro, o carioca é do tipo que tira a camisa e mete o peito. Acaba tendo problemas, levando bala como está acontecendo. Por isso acho que existe essa afinidade tão grande entre mineiros e cariocas. Não disputam um com o outro. São universos diferentes, o carioca é extrovertido, Deus fez o carioca extrovertido, deu para ele o cenário para isso! Para Minas Deus deu a introspecção, a timidez, são montanhas de todos os lados. Mamãe dizia: “- O único problema de Caratinga é que não tem horizonte!”. Ela gostava de ir para o Rio porque lá tem aquele “marzão”, ela adorava aquele horizonte fantástico. A família da minha mãe nos anos 40 a 50 mudou-se para o Rio, meu avô e minhas 11 tias. Meu avô era de uma região de Minas onde havia muitas pedras preciosas: turmalina, topázio, essas pedras que hoje são valiosíssimas, na época jogávamos bola de gude com elas. Quando era menino abria uma gaveta em casa estava cheia de pedrinhas coloridas. Passavam no rio, pegavam e levavam para casa. Até que a Segunda Grande Guerra levou os norte-americanos para a região, dirigiram-se à Governador Valadares, uma cidade relativamente próxima a Caratinga, lá havia minas incríveis, o que era mais importante para eles era a malacacheta, na época um mineral estratégico. Entre outras aplicações eles usavam como isolantes nos tanques de guerra. Antigamente era muito utilizado em ferros elétricos domésticos. Com a descoberta das minas em Governador Valadares, muitos americanos dirigiram-se até lá para explorarem a extração do mineral. Estabeleceram uma grande colônia, casaram-se, tiveram filhos. Terminada a guerra voltaram aos Estados Unidos, mas deixaram muita saudade em Valadares e toda a região. É por isso que dizem que mineiro de Valadares vai para os Estados Unidos! Eles sempre são parentes de alguém! É aquela história: “Posso ir tia? Tem um quarto para mim? To indo!

Em que bairro você foi morar no Rio de Janeiro?

Morei em Copacabana, tinha parentes no Rio.

Foi um choque cultural?

Nunca fui submetido a nenhum tipo de choque. Quando ui para Paris foi a mesma coisa, cheguei, desci na estação, já estava na Caratinga ali. Só que ela falava em francês. Fui de avião até Lisboa e de lá até Paris até a Gare d'Austerlitz  pelo trem Sud Express. Eu trabalhava na revista “O Cruzeiro”. Quando desci tinha uma pessoa do Diários .Associados me esperando. Eu não o conhecia, era um cearense. Ele estava segurando a revista “O Cruzeiro”. Eu trabalhava na revista “O Cruzeiro”. Ele me levou a um hotel que tinha reservado para mim, deixei minha mala e saímos.

Você conheceu Assis Chateaubriand ?

Conheci. A minha mulher é afilhada dele, o pai dela era um dos diretores da revista “O Cruzeiro”.
Zélio Alves Pinto e sua esposa Cecília Whitaker Vicente de Azevedo Alves Pinto, a Ciça


Em Paris como foi o seu trabalho?

Além de bolsista, dada pelo Itamarati, ganhei um dinheiro inesperado, fiz uma campanha de publicidade e recebi um valor que nunca tinha ganho, era bastante dinheiro. Algo em torno de 20.000 dólares. Eu tinha 19 a 20 anos. Esse prêmio ganhei na França. Lá fui trabalhar no bureau da revista “O Cruzeiro” onde permaneci por três anos. Até que a minha mulher apareceu por lá. Acabamos voltando ao Brasil e casamos. Estamos casadoa ha mais de 50 anos.

Qual foi a sua impressão do povo francês na época?

Havia um problema gravissimo, que era a Revolução Argelina. Havia um movimento de libertação da Argélia, as colônias estavam se livrando das metrópoles. A Guerra da Argélia foi uma guerra pesadíssima.Eu com essa minha tez de “sueco” todo dia era parado na rua. O que mais eu ouvia era um guarda dizendo “- Vos papiers monsieur !” (Os documentos). Isso foi por volta de 1962 a 1963. (Nesse instante chega um amigo de Zélio, vindo da Paraíba. Após os devidos cumprimentos e abraços prosseguimos. Zélio contando as maravilhas da Paraiba).

Você voltou ao Brasil e foi trabalhar em qual local?

Fui trabalhar de novo em “O Cruzeiro”, como a vida de jornalista não pagava placê, tive que arrumar emprego em uma agência de publicidade. Continuei colaborando com “A Cigarra”, “O Cruzeiro”, “Manchete”, “JB”, publicava meus cartuns em todos os lugares. Eu fazia muita ilustração. Se você mora em Paris e manda um trabalho seu para qualquer veículo do mundo, como rementente escreve seu endereço em Paris, esse trabalho é visto com muito mais interesse, respeito e levado mais a sério. De Paris eu enviava material para revistas alemãs, suecas, russas, quase sempre aceitavam. Compravam. Comecei a mandar do Brasil, o interesse mudou radicalmente. Não é o fato de ser do Terceiro Mundo, mas sim porque o Terceiro Mundo não traz supostamente as informaçõess que interessam a esse públco de Primeiro Mundo. Infelizmente o país não investe em cultura, pesquisa, o que ocorre são inicitavas pontuais de valores: um esportista,um cientista, alguém brilhante em sua área. Os cartunistas brasileiros, por acaso nesses últimos 50 anos tem brilhado no mundo, desde quando Piracicaba começou a impulsionar um diálogo com o exterior, a pósição para os brasileiros mudou muito. Brasileirada hoje são hoje campeões mundiais de salão de humor. Quem mais ganha salão de humor são: iranianos, brasileiros, russos, ucranianos. São regimes onde o uso do humor como linguagem para dizer as coisa, para comentar, criticar, é muito mais saudável do ponto de vista do autor, do que de outra forma. A linguagem metafórica do humor permite afirmar: “Não foi bem isso, você é quem está dizendo que eu disse isso. Isso é a sua leitura. Não estou falando isso, estou fazendo um comentário absolutamente pertinente”. Casei, fui convidado para vir para São Paulo, permaneci aqui por um a dois anos, voltei para  o Rio, fiz a Revista Urubu, trabalhei na Manchete.

Como era a relação com a Manchete?

A relação era complicacada, eles eram excessivamente familiares, não que eu veja nisso uma dificuldade, mas naquela circunstância ficou, porque cresceu. A Manchete era uma gráfica, ficou uma gráfica boa porque os administradores eram competentes, fizeram uma bela gráfica no Estácio. Com a gráfica adquiriram equipamentos que permitiam novos empreendimentos, o Adolpho decidiu fazer uma revista. A família não estava acreditando. Era loucura fazer aquilo. Havia um lobby judaico, precisavam publicações, desde a Segunda Grande Guerra os judeus estão lentamente assumindo o contrôle sobre as comunicações, no mundo, e sobre as finanças. Isso é histórico. O Chateubriand falhou nisso, ele não fez um grande banco. Ele era um romântico, não um financista. Era um homem notável, fazia as coisas acontecerem. Ele estava mais centrado na Inglaterra e eu na França. Ele vivia em Londres. Quando ele chamava alguém para ir a Londres iam os mais velhos de casa. Eu ainda era muito novo. Estive com ele umas duas vezes em que ele foi a Paris. Nunca fui a Londres enquanto ele era embaixador. Aonde Chateubriande chegasse em Londres naquela época era festa. Era o Rei do Brasil, Dono do Brasil.

Quanto tempo você permaneceu na Manchete?

 Uns dois a três anos. Fiz uma revista de humor chamada “Reis do Iê-Iê-Iê” foi por volta de 1966 a 1967. Essa revista era de um dono de uma pequena editora, tinha sido funcionário da Rio Gráfica, ele brigou com o Roberto Marinho, saiu, comprou o equipamento, naquela época podia importar máqina de impressão, o Roberto Campos desenvolveu uns planos para facilitar a importação de insumos básicos, uns dos itens eram equipamentos de impressão gráfica. Isso tinha financiamento do BNDS da época, me convidou para fazer revistas. Ele perguntou-me como seria o nome da revista de humor, disse=lhe: “Urubu!”. Ele deu uma risada e disse que isso não era nome de revista. Eu disse-lhe que era exatamente isso que eu queria, que as pessoas rissem ao pegar a minha revista. Foi um grande sucesso. Assim fiz uma segunda revista, uma terceira, uma revista de música popular brasileira. Uma outra revista feminina chamada Carinho, vendia bastante. Foi antecessora da Capricho e outras semelhantes. Essas revistas deram um impulso para a editora pequenininha, a gráfica dele era pequena e a demanda muito grande, ele começou a imprimir na gráfica da Manchete. O Adolpho viu que estava aumentado cada vez mais, quiz saber quem estava fazendo a revista, ao saber que era eu, convidou-me para fazer uma revista chamada Jóia. Convidaram-me pa ra sair daquela editora pequena e ir dirigir uma revista em uma grafica com potencial maior. Tinha uma grande redação, veiculos, toda uma infta-estrutura. Fui para a Manchete onde permaneci por um bom período. Eram três parentes: tio-avô: Adolpho Bloch, coordenava todo mundo, o genro Oscar Bloch era o financeiro, e o neto Pedro Jack Kapeller, o Jaquito era do editorial, o Adolpho concentrava as decisões, por exemplo eu queria colocar uma capa na revista ele queria outra. Todo mês era uma briga para acertar a capa com ele. Quando saia a revista ele dizia: “Está vendo! Vendeu menos do que teria vendido, se fosse a minha capa teria vendido mais!”. Era sempre assim! Até um dia em que não aguentei mais, disse-lhe: “Desculpe-me, recebi um convite, estou indo para São Paulo”. Vim para São Paulo para criar uma agência de públicidade: a Probras Propaganda Brasileira Sociedade Anônima. Situava-se na Rua 3 de Dezembro, no centro. Naquela época alí que era São Paulo. Fiquei pouco tempo na agência. O banco não queria fazer publixcidade porque o avô da minha mulher dizia que banco sério não faz publicidade. Quem faz a publicidade do banco é o cliente. Tinha criado uma campanha linda para o Banco Comercial do Estado de São Paulo, com fotos lindíssimas. O banco era todo estilo inglês, o prédio quem tinha construido foi o avô da minha mulher, José Maria Whitaker, um financista reconhecido, respeitado mundialmente, foi quem tirou o Brasil do jugo financeiro anglo-saxônico, quem atribuía valor ao dinheiro brasileiro, distribuía, era um banco alemão e o inglês Rothschild. Em 1917 os americanos assumiram com o Federal Reserve. O dolar é a moeda mundial. Ha mais de 40 anos a China está trabalhando para tentar deslocar, o BRICS( Brasil,Russia,India, China e África do Sul) foi uma tentativa, o Brasil não estava fortee o suficiente para essa participação. Infelizmente o Brasil está sob o jugo do mercado internacional, e quem está no mercado internacional não quer mais parceiro. O máximo que eles podem aceitar é como fornecedor de insumos, matéria prima.

Você é religioso?

Fui seminarista, ia ser padre.

Como você foi parar no Pasquim?

O Pasquim me pegou no pulo! Em 1969 eu estava vindo para São Paulo, quando saiu a primeira edição do Pasquim. Tinha gente muito boa: Paulo Francis, Jaguar, Tarso de Castro, Fausto Wolff, Millor,

E quanto ao Salão de Humor de Piracicaba?

A primeira palestra que fiz em Piracicaba foi no Hotel Beira Rio que estava em obras. Fui convidado pelo pessoal de Piracicaba a explicar o que era um salão de humor. O pessoal era muito conservador, continua sendo uma cidade conservadora. Aconteceu um incidente que marcou o salão, e imagino que até hoje existe por certa camada da população uma rejeição disfarçada pelo Salão de Humor de Piracicaba. Existem várias razões: Primeiro porque o Salão foi feito por pessoas alheias a sociedade piracicabana; os filhos de Piracicaba participaram, mas muito discretamente. O Salão é Internacional não por pretensões, mas por precaução. Quando o Salão surgiu em 1974 por acaso eu tinha uma relação muito estreita com a Europa, preocupado com a reação dos militares que poderiam achar que éramos todos comunistas, isso tinha acontecido com o Pasquim.

Você foi quem lançou o Primeiro Salão de Humor do Mackenzie, em São Paulo?

Tinha sido convidado para ir ao salão de Lucca, Itália, que era um salão muito importante, de quadrinhos e desenhos animados. Freqüentavam lá também os grandes cartunistas. Fizemos o Primeiro Salão Nacional de Humor no Mackenzie. O Fagundinho de Piracicaba tinha viajado, quem ficou substituindo-o como Secretário da Ação Cultural foi Alceu Righetto, quando ele entrou no meu ateliê com Carlinhos Colonese, Adolpho Queiroz isso em São Paulo. Tinha a disponibilidade de fazer um salão em Piracicaba. Eles, por minha indicação foram até o Rio de Janeiro, levando cachaça de Piracicaba. A Neuma que os recebeu. Piracicaba hoje é uma metrópole. Eu a conheci quando ainda era uma cidade, uma boa cidade. Tudo com sobrados, era linda. Quando cheguei aqui pela primeira vez me encantei com o casario. Foi em junho ou julho de 1974. Foi o ano em que fizemos o Primeiro Salão de Humor de Piracicaba, no prédio onde havia funcionado o Banco Português do Brasil.

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