JOÃO UMBERTO NASSIF
Jornalista e Radialista
Sábado 25 de setembro de 2010
Entrevista: Publicada aos sábados no caderno de domingo da Tribuna Piracicabana
As entrevistas também podem ser acessadas através dos seguintes endereços eletrônicos:
http://blognassif.blogspot.com/
http://www.teleresponde.com.br/
ENTREVISTADA: EVANGELINA (EVA) DE BARROS BELLA
O casarão onde se localiza o Museu Histórico Sorocabano foi construído pelos escravos de João de Almeida Pedroso em 1780. Passaram pelo casarão oito moradores, o último deles foi Joaquim Eugenio Monteiro de Barros, o “Quinzinho de Barros”, de cujos filhos a Prefeitura de Sorocaba conseguiu o patrimônio que dá nome ao Parque Zoológico Municipal Quinzinho de Barros. Em 1842 o casarão recebeu a visita mais importante de toda a sua existência, a Marquesa de Santos, que vivia com o Coronel Rafael Tobias de Aguiar, e que por causa da Revolução Liberal ocorrida naquele ano, ali se asilou, pois na casa de Tobias, na cidade, era grande o movimento dos revolucionários.
Uma das netas de Quinzinho de Barros, filha de Milburges Prestes de Barros Bella e Vicente de Paula Bella é Evangelina (Eva) de Barros Bella, nascida na Rua Dona Inácia Uchoa, Vila Mariana, São Paulo, em 12 de julho de 1939. Ela relata a sua infância transcorrida no Jardim Paulistano, para onde a família havia mudado. Lembra-se dos casarões da Avenida Paulista, da suntuosa mansão do Conde Francisco Matarazzo, situada na mesma avenida que veio a ser
demolida e o terreno transformado em estacionamento.
Belvedere existente onde hoje é o MASP
Belvedere existente onde hoje é o MASP
Mansão Mattarazo sendo demolida, anos 80
Tem na lembrança a figura de um ilustre passageiro que embarcava no bonde, Washington Luís Pereira de Sousa, o décimo terceiro presidente do Brasil, deposto e exilado, viveu muitos anos nos Estados Unidos e posteriormente na Europa. Regressou ao Brasil em 1947 e faleceu em São Paulo a 4 de agosto de 1957.
Famoso bonde "camarão"
Bonde na Avenida Paulista em 1966
Washington Luiz
Casou-se com Carlos Maria, homem de grande cultura, célebres amizades, um dos precursores da Rádio Eldorado, pertencente ao Jornal O Estado de São Paulo. Ela conserva até hoje um belo exemplar de livro com tiragem limitada, com a dedicatória do autor, Vinicius de Moraes.
Livro com dedicatória de Vinicius de Moraes para Carlos Maria
Desde menina, Eva transitou por um ambiente de muita cultura, em uma época em que o romantismo dominava, poetas eram pessoas aclamadas, intelectuais incensados, havia glamour, sofisticação. Atualmente Eva reside em companhia de seus cães em uma agradável residência no Lar dos Velhinhos de Piracicaba. Sempre sorridente busca na memória as lembranças tão queridas, com a alegria de quem soube muito bem o que desejava da vida. Foi uma mulher arrojada para a sua época sem, contudo transigir com seus valores e princípios. Eva casou-se com Carlos Maria de Araujo, poeta português nascido em Lisboa em 9 de abril de 1921, ele em 1949 foi morar na Suíça, passando por uma breve temporada na Inglaterra veio morar no Brasil, iniciou sua colaboração no Jornal O Estado de São Paulo e na Rádio Eldorado, colaborou com artigos para diversos jornais brasileiros, publicações britânicas e americanas. Assinou por longos anos a crônica satírica “Aos Domingos”, publicada no jornal “O Estado de São Paulo”. Em 20 de agosto de 1962, a caminho da Inglaterra, faleceu na queda do avião na Baia da Guanabara. A obra de Carlos Maria de Araújo é composta por quase uma centena de poemas, reunidos em quatro livros, que cobrem pouco mais de uma década de produção poética, de 1950 a 1962, é um poeta injustamente esquecido, tanto no Brasil como em Portugal, com obras reconhecidas por críticos como Sergio Millet e Jorge de Sena. As universidades brasileiras estão redescobrindo a obra de Carlos Maria de Araújo.
O seu avô paterno tinha amizades importantes?
Ele fazia parte de uma minoria alfabetizada, foi amigo de Júlio César Ribeiro Vaughan, conhecido popularmente como Julio Ribeiro, que entre outras coisas criou da bandeira do Estado de São Paulo, escritor famoso por suas obras, como o romance “A Carne”, publicado em 1888. Julio Ribeiro ficou muito doente, com tuberculose, e foi tratar-se em Santos, deixando sua mãe aos cuidados do meu avô, ela não queria sair de Sorocaba. Julio Ribeiro tinha uma vida muito interessante, era filho de um trapezista americano de circo e de uma mineira. Sorocaba tornou-se um marco obrigatório para os tropeiros devido a sua posição estratégica, eixo econômico entre as regiões Norte, Nordeste e Sul. Com o fluxo de tropeiros, o povoado ganhou uma feira onde os brasileiros de todos os Estados reuniam-se para comercializar animais, tornando-se uma localidade muito importante, isso nos séculos XVIII e XIX.
A família da senhora tem fortes laços com a cidade de Sorocaba?
Tanto pelo lado materno como também do paterno a origem é Sorocaba. São famílias de longa tradição na cidade, sendo que os meus pais fazem parte dos poucos que saíram para morar em outra cidade. Tiveram oito filhos, o mais velho Vicente de Paula, foi diretor da Acesita, o segundo filho Cezar de Barros Bella era aviador, na época da Segunda Guerra ele fez o curso de piloto militar nos Estados Unidos, assim que tirou o brevê acabou a guerra. Voltou ao Brasil e passou a trabalhar na aviação comercial, o primeiro emprego foi na REAL - Redes Estaduais Aéreas Ltda., transferiu-se para a VASP, onde se aposentou. Em seguida nasceu a minha irmã, Maria Cecília, nutricionista, outro filho era o Celso de Barros Bella, que entrou na Varig, como aviador, onde se aposentou. A quinta filha é nutricionista, a Joana. O sexto filho era advogado e jornalista, José Joaquim, fazia a coluna de teatro na Folha de São Paulo. Depois veio o Ivan, jornalista, que fez o primeiro curso de publicidade que houve no Brasil, no Museu de Arte Moderno, ainda na Rua Sete de Abril. Ele fez carreira até trabalhar no jornal Estado de São Paulo. Eu sou a filha mais nova.
A senhora era estudante quando a sua família mudou-se da Vila Mariana para outro bairro?
Fomos morar no Jardim Paulista, na Rua José Clemente, 255, é uma rua paralela a Avenida Brigadeiro Luiz Antonio, começa na Rua Estados Unidos e termina quase na Avenida Brasil. Quando mudamos para lá eu fiquei muito encantada com o lugar, havia jardim em frente as casas, na esquina morava a família Arens que era parente do Washington Luiz, ele andava no bonde com a gente, isso foi depois que ele voltou do exílio. Na época o bonde era uma condução muito utilizada por todos, e o bonde Jardim Paulista era famoso, havia o fechado que por ser vermelho era denominado “camarão”, e existia também o aberto. Nós não tínhamos as condições financeiras das pessoas que moravam na Avenida Paulista, mas culturalmente estávamos no mesmo nível, o meu pai sempre cuidou muito da nossa formação, acredito que fui um dos casos raríssimos que na época usou aparelho ortodôntico. Só quando adulta é que fui me aperceber que fomos criados em um sistema onde o que importava era os valores da nossa família, que sempre priorizou os estudos e a moral, isso dentro de uma liberdade incomum para a época.
O pai da senhora trabalhou no SENAI?
Meu pai era professor, foi diretor de ensino, foi secretário do ensino profissional, quando o suíço Roberto Mange criou o SENAI ele convidou o meu pai para ir trabalhar com ele, comissionado junto ao SENAI. Papai falava fluentemente o francês, tendo facilidade de comunicação com o suíço.
Como era o Jardim Paulista na época?
Existiam casas enormes, com pessoas famosas, lembro-me do Campos, um dos primeiros publicitários de São Paulo, foi de sua autoria o lançamento da publicidade do Toddy o garoto Toddy era irmão dele! Outra vizinha era Dora Ferreira da Silva, poeta e tradutora de Rilke A Avenida Paulista era linda, eu adorava aquelas casas. Tomava o bonde em frente a casa do Matarazzo, que ocupava m quarteirão. Conheci a família Suplicy, minha prima Renata Borges casou-se com o Anésio, irmão mais velho do hoje senador Suplicy, eles tinham uma casa enorme na Alameda Santos, quase esquina com o Parque Siqueira Campos. Eu era “vela” (uma criança pequena que acompanhava os namorados para relatar depois aos pais se alguma coisa acontecera de errado) da minha prima Renata.
A senhora chegou a ver a construção do MASP na Avenida Paulista?
Senti muito quando foi construído o MASP, antes era um parque com um belvedere, de onde se avistava São Paulo inteira de lá, eram realizados bailes no local. Era muito lindo, tinha um ar europeu. Sou contra o modernismo acabar com o que existe de bonito. Lembro-me da Maria Anna Olga Luiza Bonomi, escultora, pintora, neta de Giuseppe Martinelli, construtor do primeiro arranha-céu da América Latina, ela muito amiga do meu irmão, ela era casada com o Antunes Filho, famoso diretor de teatro.
Conheceu uma costureira muito famosa, estabelecida na Avenida Paulista?
Era a Madame Rosita! Tive um desfile especial, foi feito para mim e para meu marido, eu casei-me aos dezenove anos com Antonio Maria de Araujo. (A Maison Madame Rosita ficava no número 2.295 da Avenida Paulista, num casarão que possuía frigorífico especial para as suas peles). È interessante, mas eu estava sempre onde estavam acontecendo às coisas.
Como foi o seu ingresso na Rádio Eldorado?
Meu irmão José Joaquim, queria que eu trabalhasse, eu não queria, ele tinha muitos amigos na Radio Eldorado, inclusive o ator Rubens de Falco que era locutor, a rádio que estava iniciando suas atividades. Fui levada até a rádio quase a força, eu fiz o teste com o Carlos Vergueiro, ele era ator do TBC, no tempo da Cacilda Becker. O Vergueiro me perguntou: “-Você sabe inglês?”, respondi: “-Não!”, ele perguntou: “- Você sabe datilografar?”, respondi: “-Não!”, ele então me disse: “-Está empregada!”. A rádio só tinha o Promusica era vendido para empresas. (Não havia a FM doméstica e a música ambiente entrou em moda. A Eldorado criou um canal em FM transmitindo música ambiente e instalava um receptor da Telefunkem marca FREMO, a válvulas, com sistema de amplificação e alto falantes, cobrando uma taxa pelo serviço). A Eldorado ficava na Major Quedinho, no sétimo andar, o correspondente em Paris comprava os discos lançados na Europa. Fui trabalhar na discoteca, fazia o fichário e a cronometragem dos discos, não vinha estampado o tempo de duração de cada musica. A rádio era um ponto divertidíssimo, com um auditório muito moderno, acústica perfeita, o engenheiro técnico era o Dr. Macedo. O maestro Diogo Pacheco fazia programa de música latino-americana.
Como você conheceu Carlos Maria Pereira Pinto de Araujo?
Ele trabalhava na Eldorado, era redator de programas de música americana, entendia muito de jazz, fazia programas de canções de todo mundo, trabalhava das 9 ao meio dia na rádio e depois ia para o jornal Estado de São de São Paulo, onde era redator da seção internacional, ele era fluente em seis idiomas. Casamo-nos na Bolívia, ele tinha 36 anos, era desquitado. Eu o conheci em 1957, em 1962 ele faleceu. Aos 23 anos fiquei viúva com uma filha de 2 meses. Fui fazer Ciências Sócias na USP á noite e trabalhava em revistas técnicas, como redatora. Teve um período em que tive que parar de estudar, tinha entrado para a faculdade em 1967, em 1968 eu estava na Rua Maria Antonia, onde fazia o curso de Ciências Sociais, no primeiro dia de aula já havia uma greve na escola, não houve aula, no dia seguinte ao chegar ao trabalho meu colega comentou: “-Você começou bem!” e mostrou-me a primeira pagina do Jornal da Tarde, onde havia uma fotografia do pessoal em greve, e eu aparecia nela! Naquela época era um perigo, o Dops já fichava, os meus antecedentes familiares eram suspeitos aos olhos do regime da época, meu marido tinha se indisposto com o regime salazarista, meu tio Emerenciano Prestes de Barros que foi deputado federal, prefeito de Sorocaba, foi cassado como comunista, meu irmão era presidente da Comissão de Liberdade de Imprensa do Sindicato dos Jornalistas. Fui convidada a participar do grêmio estudantil. O Celso Ming estava formando-se na época, como sociólogo. Fiquei na comissão de imprensa do CEUPES - Centro Universitário de Pesquisas e Estudos Sociais - Centro Acadêmico de Ciências Sociais – USP.
A senhora participou da quebradeira que houve na faculdade?
Em 1968 fecharam a faculdade, o CCC, Comando de Caça aos Comunistas tinha ligações com os estudantes do Mackenzie, que ficava em frente a nossa faculdade, na Rua Maria Antonia. Eles eram da extrema direita. Nunca foi falado isso? Tenho a minha obrigação de falar. Se pudéssemos falar quem são muitos dos nossos políticos! Nós estávamos fazendo prova de antropologia, as luzes apagaram de repente, ficamos em frente ao prédio esperando a energia retornar, o pessoal do Mackenzie passou a nos provocar, atirando ovos em nós. Voltamos pacificamente á classe. Existe uma passagem subterrânea que atravessava da Rua Maria Antonia até a Rua Dr. Vila Nova, onde havia a faculdade de economia da USP. Eu estava em casa quando a faculdade foi fechada.
A senhora foi procurada por alguma autoridade da época?
Apesar de ter ligações perigosas, não fui procurada por ninguém, nunca fui fanática por nada, acho que todos os fanatismos se assemelham.
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